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Porque somos todos iguais na diferença

Coletivo Trans Sol dá aulas de costura para promover a inclusão de mulheres trans no mercado de trabalho e tirá-las da prostituição

Por Claudia Pereira
Atualização:

Projeto independente nasceu no final de 2016 e atende mulheres transgêneras, transexuais e travestis

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Rose Mary é daquelas pessoas que encantam logo de cara. Mesmo que quisesse passar despercebida, não poderia. Alta, magra, toda trabalhada na maquiagemâ?¦linda. Nasceu menino, foi registrado como menino. Mas desde muito pequena já sabia que aquele corpo masculino não correspondia com o que ia em seu coração, mente, espírito e descobertas femininas.

Quando completou 14 anos, os pais começaram a perceber que o filho apresentava muitos trejeitos afeminados, foi expulsa de casa e ficou perambulando pelas ruas de Alagoas, seu Estado natal. Permaneceu nessa vida até os 18 anos. Neste período, trabalhou como engraxate, atendente de bar, carregava sacolas para conseguir uns trocados, lavava carros. "Não conhecia o mundo travesti. Comecei a deixar o cabelo crescer, descolori, fiquei meio andrógina. Até os 18 anos, mesmo me enxergando como uma mulher, nunca tinha usado saia, nem maquiagem. Morria de vergonha", comenta Rose.

Aos 19 anos, estava decidida a se mudar para São Paulo. Nesta época, já conhecia um pouco do universo gay e alguns amigos indicaram uma casa de prostituição para que ela começasse uma nova vida na cidade grande. "Até então, nunca tinha passado pela minha cabeça que poderia ganhar dinheiro com o meu corpo".

Rose Mary Monteiro foi expulsa de casa aos 14 anos por ser uma mulher trans. Foto: Divulgação.

Usou saia e maquiagem pela primeira vez quando entrou para a prostituição. Mas como não tinha um corpo muito feminino logo que chegou, pois ainda não fazia uso de hormônios, não ganhava muito dinheiro. "Fui ficando escrava das cafetinas, pois precisava comer, tinha a diária que precisava pagar. As meninas que trabalhavam na casa usavam drogas, álcool. Comecei a perceber que aquela vida não era para mim, mas não sabia como sair daquilo".

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Se prostituiu durante três anos, até que um cliente perguntou por que ela não fazia um curso de cabeleireira para sair daquela vida. "Ele foi o meu primeiro amor. Eu tinha medo de sair da prostituição, pois as cafetinas te caçam, cortam a sua cara, arrancam a sua orelha".

O cliente propôs ajudá-la e alugou um quarto para morarem juntos. Ela iniciou o curso de cabeleireira e sua rotina mudou drasticamente. Por medo de ser "caçada" pela cafetina, Rose deixou de sair à noite, passando a ter uma vida diurna. "Só voltei a sair à noite depois que soube da prisão dela". Ela conta que tudo melhorou depois que saiu da prostituição. Enquanto se dedicava ao curso, o companheiro montou um minissalão na casa para ela atender as primeiras clientes. "Comecei a trabalhar com as vizinhas e a ganhar meu próprio dinheiro".

Maioria das mulheres trans recorre à prostituição para sobreviver. Foto: Pixabay

Mas nem tudo era apenas felicidade na vida de Rose. Embora a ajudasse bastante, o parceiro tinha problemas com drogas e bebida e, constantemente, a agredia fisicamente. "Depois de muitas idas e vindas, um dia dei um basta. Arrumei um emprego em um salão de periferia e continuei fazendo cursos. Passei por vários salões e, quando me separei de vez, já conseguia me sustentar sozinha".

A história de Rose é bem comum do ponto de vista de que muitas mulheres transgêneras, transexuais e travestis acabam nas ruas, se prostituindo para sobreviver. Porém, muitas delas não conseguem mudar essa situação e seguir adiante. "Há muito preconceito com a mulher trans, fora todas as outras coisas". Um dos pontos que Rose Mary aponta é a questão da identidade, de as pessoas trans poderem e terem mais facilidade de modificar seus documentos.

De acordo com dados colhidos pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), 90% das pessoas trans acabam se prostituindo em algum momento da vida para poder se manter.

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Coletivo Trans Sol

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Após dar um novo rumo para sua vida, Rose queria voltar a estudar. Mas tinha receio por conta do nome original (masculino), não queria passar vergonha, sofrer mais preconceito. Hoje, ela tem toda a sua documentação em nome de Rose Mary Monteiro.

Por meio de uma amiga, conheceu o Projeto Reinserção Social Transcidadania, da prefeitura de São Paulo, que tem como proposta fortalecer as atividades de colocação profissional, reintegração social e resgate da cidadania para a população LGBTT em situação de vulnerabilidade, atendidas pela Coordenadoria da Diversidade Sexual (CADS).

Segundo informações do site da prefeitura, as pessoas atendidas pelo programa recebem um auxílio mensal de R$ 983,55 por uma carga horária diária de seis horas.

Dentro do Transcidadania, Rose conheceu o Coletivo Trans Sol, projeto independente idealizado pelas amigas Priscila Nunes, que já foi casada com uma pessoa trans e foi proprietária de um bar LGBTT, e Mavica Morales Galarce, que tem um filho homoafetivo e, com isso, passou a ser cada vez mais ativista na causa da diversidade.

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Um dos principais objetivos do Trans Sol é promover a inclusão de pessoas transgêneras, transexuais e travestis no mercado de trabalho.

A história do coletivo, criado em outubro de 2016, começa com Priscila e Mavica discutindo o fato de como essas pessoas eram marginalizadas mesmo dentro de grupos LGBTT. "Queríamos fazer algo. Num primeiro momento pensamos em sair nas ruas e ver quem conseguíamos ajudar. E saímos, fomos para as ruas com o objetivo de conhecer esse público e descobrir como poderíamos auxiliar. A ideia era trabalhar com as travestis", explica Priscila.

Demorou quase um ano para a ideia sair do papel. "Nosso objetivo era gerar renda com produção de bonecas e crochê, ouvir histórias e saber por que elas estavam nas ruas", comenta Mavica.

No meio do caminho, as amigas conheceram o pessoal da Rede Design Possível, que as apresentou para a Incubadora Economia Solidária - SP (Ecosol), da prefeitura de São Paulo.

Foi quase um ano participando de reuniões, feiras etc para estruturar o projeto. "Um educador da incubadora disse que estavam em busca de um projeto com travestis. Fizeram uma ponte com o Transcidadania para que o público chegasse até nós. O Transcidadania tinha vendido o curso como corte e costura, sendo que a ideia original era fazer bonecas e crochê", relembra Priscila.

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Logo na primeira reunião, Priscila e Mavica comentaram com as meninas travestis e trans que a ideia era fazer bonecas e vestidos, mas as alunas falaram que queriam aprender a fazer calcinhas para vender. Elas explicaram que, normalmente, as calcinhas para este público são diferentes. Precisam ser bem reforçadas, têm design diferenciado e custam caro. Por isso o interesse das alunas na modelagem e na produção desse tipo de artigo.

Como Priscila e Mavica não entendiam nada de costura, pediram ajuda a um outro amigo, Otávio Matias, que por sua vez convidou um ex-professor, Renato Raga, para compor o time.

"É mais que um curso de moda, é um projeto para que elas possam aprender a lidar com finanças e comércio. A ideia é que elas criem os próprios trabalhos sem depender de terceiros. Elas nos dizem o que querem fazer e seguimos", comenta Otávio.

Rose Mary, que é a representante do grupo, a porta-voz, costuma pegar todas as demandas das meninas e repassa para os voluntários do projeto. "Em um ambiente público elas têm vergonha. Quando elas vão para o grupo, elas se sentem em um outro universo. A autoestima é um grande problema para todas elas", diz Rose, e completa "É muito importante a geração desses cursos profissionalizantes. As meninas não conhecem o mundo real, apenas o submundo. Tudo é estranho e se armam para tudo. Precisam, inclusive, aprender a se portar".

Otávio Matias relembra as primeiras aulas, dizendo que sempre era uma gritaria, uma bagunça. Mas que nas últimas vezes, todas estavam trabalhando em silêncio. "Acho que elas começaram a perceber que não precisam provar nada pra gente. A partir do momento que se sentiram respeitadas e acolhidas, se abriram mais".

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Atualmente, o projeto atende 16 alunas.

Primeiro contrato e processo criativo

Em menos de um ano de existência, o coletivo Trans Sol já passou pelo seu primeiro corte de verbas, o que quase deu fim ao projeto. Priscila Nunes explica que no processo de transição entre a antiga gestão da prefeitura e a nova tudo ficou meio incerto. "Foram dois meses que tudo ficou por conta do coletivo", comenta.

Com a incerteza do orçamento, no começo do ano conseguiram fechar um contrato para desenvolver vestidos para bonecas estilo Blythe para a artista plástica Cristina Bottallo.

"Hoje, conseguimos pagar as alunas para fazer o trabalho. E elas chegaram sem saber pregar um botão", comemora Priscila.

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Sobre o processo criativo, a ideia é que as meninas sejam criadoras. Para ajudá-las nesta trajetória, elas contam com o ex-professor do Senac, Renato Raga, que é um dos voluntários do projeto. "A ideia é ter aulas de processo criativo, de desenho. Tem meninas aqui que são uma verdadeira biblioteca da moda, são superinformadas. O que mais me cativa é que são interessadas, querem saber. O desejo de fazer roupa é grande. Fazer roupas para elas, coisas que elas não encontram, não têm condições de comprar", e completa "tem uma aluna que costura todos os vestidos à mão, em estilo africano. Ela não tem técnica, mas muita vontade e criatividade. Não sabia desenhar, mas foi uma das mais criativas no desenvolvimento das roupas de um projeto que fizemos. Tudo aqui é coletivo. Todas as decisões são feitas em grupo".

O curso ocorre às quartas, das 13h às 17h, no bairro do Glicério, em São Paulo. O espaço é aberto para visitação e, quem quiser contribuir com doações, o grupo sempre precisa de itens para o lanche das meninas, além de tecidos, aviamentos, tesoura para tecidos, carretilhas e maquinário, pois, atualmente, usam os equipamentos da incubadora, e o objetivo é, um dia, terem o próprio espaço. Para saber mais sobre o Trans Sol, basta visitar a página no Facebook: https://www.facebook.com/voluntariostranssol/.

Comentários e sugestões de pauta devem ser encaminhados para os e-mails familiaplural@estadao.com e familiaplural@gmail.com

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