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Impressões sobre a vida e seus arredores

O clamor das ruas

Confissão de um homem sem jeito para coisas grandiosas

Por Raul Drewnick
Atualização:

Há momentos em que sujeitos simples como eu, habituados a lidar apenas com ideias e sentimentos corriqueiros, se veem de repente sacudidos por outros, de muito maior peso e contundência. Desacostumados a eles, nós nos achamos cidadãos de segunda classe quando esses sentimentos, depois de nos abordar na rua, nos vêm bater à porta de casa.

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Enfiados na sala, envergonhados de nós mesmos, já há algum tempo ouvimos o clamor de palavras como democracia, legalidade, justiça e outras tantas. Dois grupos as vêm gritando com igual vigor e se afrontam, e se defrontam, e se confrontam: para cada um deles as palavras parecem proclamar diferentes conceitos.

Nos últimos tempos, esse rumor vem cobrando de mim uma posição. Incapaz de me decidir, o que faço eu,aprendiz de poeta que desde a infância tenho me ocupado de amores, flores e passarinhos? Sento-me no sofá e ligo a tevê. Isso resolve? Nada. Na tela, as palavras, as mesmas, me interpelam, me instigam, me provocam. Os dois grupos continuam a bradá-las, e em seguida abrem faixas, e agitam bandeiras, imaginando que talvez eu seja surdo, mas não cego.

Eu poderia, para defender minha sonsice, alegar minha inequívoca condição de homem idoso, como a minha cédula de identidade comprova, mas eu mesmo acabo me reprimindo: que vergonha, com esta idade, não estar nem num lado nem no outro.

Eu poderia também - e é o que tento - fingir-me de morto, mas assim que fecho os olhos e me afundo mais no sofá surge uma daquelas moscas pleonasticamente chatas. Ela me zumbe ideologicamente no ouvido direito, e depois no esquerdo, em proporções iguais. Tenta despertar meus instintos cívicos.

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Nessas ocasiões, gostaria de ter um gato. Tive tantos, já (ou tantos me tiveram). Seria bom dividir o sofá com um, mesmo que fosse só para ter com quem compartilhar a culpa por minha apatia institucional. Ele se chamaria talvez Neco. E eu lhe diria:

"Você sabe, Neco, que eu não sou insensível nem indiferente. Só não tenho mais saúde nem jeito para coisas grandiosas."

Neco, na sua linguagem ronronante, me tranquilizaria, atestando meu afeto pelas coisas miúdas: beija-flores, borboletas, gatos. E ele e eu nos reconfortaríamos, e nos absolveríamos pela nossa mútua posição de democratas moderados.

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