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Impressões sobre a vida e seus arredores

Nosso amor juvenil

Daríamos tudo por ela: o coração, a vida, a alma

Por Raul Drewnick
Atualização:

Pixabay Foto: Estadão

Estou me relacionando com um senhor da minha idade. Eu o conheço há muitos anos. Muitos, mesmo. Temos várias coisas em comum. Nascemos da mesma mãe, São Paulo, esta desvairada metrópole, e só continuamos vivos porque fomos amamentados por ela com seu leite de cimento.

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Tivemos ideais semelhantes na adolescência. Aquelas coisas todas de jovens, resumidas numa pretensão: transformaríamos o mundo, embora ainda não soubéssemos bem como faríamos isso.

Ele e eu amávamos as mesmas coisas: a música, o futebol, o cinema e - por uma dessas coincidências que acabam reforçando uma amizade - tínhamos uma paixão imensa, uma obsessão, uma adoração: a literatura.

A literatura era como uma garota que nós disputávamos como se fosse a única no mundo. Por ela estávamos dispostos a dar o coração, a vida, a alma. E o corpo, naturalmente.

Ambos pensávamos que, para conquistar essa garota, o melhor caminho seria a poesia. Éramos da escola romântica e, é claro, dispúnhamos de um estoque de rosas, de arcos-íris, de êxtases, de frenesis, de arrebóis e outras quinquilharias. Estávamos ultrapassados.

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É fácil dizer isso hoje, mas na época nem desconfiávamos disso. Presenteamos a literatura, nossa garota adorada, com pulseiras, berloques, colares, diademas, pechisbeques.

Ela recebia esses mimos e, assim que nos afastávamos, ia mostrá-los aos seus amantes realistas (ah, traidora, como riste de nós). Para o meu então jovem amigo e para mim, foi um suplício ver nossa garota nos braços daqueles homens que nos pareciam intoleravelmente grosseiros: barbudos, tatuados, debochados.

Infeliz na poesia, meu amigo procurou abrigo na prosa. Talvez a literatura passasse a vê-lo com olhos menos sarcásticos. Eu tomei o mesmo rumo.

Logo depois desse infortúnio amoroso, ele e eu fomos levados a nos dedicar àquela tarefa conhecida como ganhar a vida. Perdi contato com ele por várias décadas.

Recentemente nos reencontramos. No início nos encaramos com certa estranheza, com aquela timidez que às vezes existe entre dois homens que sabem qual foi a maior derrota de cada um. Depois, retomamos aos poucos a intimidade e a confiança antigas.

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Ontem nos atrevemos a lembrar o episódio da literatura. E foi como se as duas histórias fossem uma só, e só um, também, o personagem. Durante o tempo em que ficamos sem notícias um do outro, ele teve certo sucesso na prosa, idêntico ao que consegui com meus livros juvenis: nada de que possamos realmente nos orgulhar.

Depois da mútua confissão, ele me perguntou:

"E a poesia?"

Eu suspirei:

"A poesia? O que é que tem?"

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"Você ainda...?"

"Ainda."

Ele sorriu:

"Eu também."

Nós nos abraçamos. Éramos dois velhos admitindo, gostosamente, que nem todos os ideais da juventude se dissipam com o tempo.

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