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Impressões sobre a vida e seus arredores

A inquietante boca do escuro

Alguns tons e meios-tons, do amor à morte

Por Raul Drewnick
Atualização:

pixabay Foto: Estadão

+ É no escuro que o amor começa a ficar mais cheio de dedos.

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+ A língua enxerga no escuro.

+ O melhor sorriso é aquele que se abre no escuro, a um centímetro dos lábios amados.

+ Nua diante do espelho, coloca a echarpe e sorri ao compará-la com os cabelos: ornam. Desce os olhos devagar, molemente, para os fiozinhos embaixo do umbigo, e sorri de novo: combinam. Tudo correrá bem hoje, se o homem não for um daqueles que só fazem certas coisas no escuro.

+ Se no escuro ele sente cheiro de carne jovem, seu sorriso imediatamente se transforma em dentes.

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+ Chega sempre o dia em que o amor nos leva para um canto escuro, avisa que vai nos fazer uma revelação, nos beija com todas as línguas e, acendendo repentinamente a luz, nos mostra, no meio de uma gargalhada, sua boca sem nenhum dente e seu rosto de bruxa da Branca de Neve.

+ Nas matinês antigas, antes da invenção da 3D, os tiros que vinham da tela não assustavam os garotos na plateia, nem nos importavam muito as disputas pelas terras do Oeste, nas quais os caubóis se empenhavam. Interessava-nos avançar cautelosamente com as mãos no escuro, deslizando pelo ombro da garota ao nosso lado, e por onde mais pudéssemos, e conquistar alguns centímetros do mais delicioso de todos os territórios.

+ No escuro, no âmago das trevas, nossa alma implora por um brilho, ainda que opaco. Já não lhe importa se virá de uns olhos azuis, de um sorriso claro ou da lanterna de um assaltante.

+ Meu maior prazer, hoje, é fingir-me de morto. Que delícia é deitar-me, fechar os olhos e os ouvidos e ir afundando no escuro, camada por camada, até o reino do absoluto silêncio e da paz. Creio ser talentoso nisso e até penso ter certo futuro.

+ Tem sempre o pesadelo: o carro funerário empaca e, enquanto o motorista vai buscar socorro, ele fica sozinho no escuro e começa a sentir falta de ar.

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+ De dia, ao sol, e à noite, no escuro, a Morte vinha, o apalpava, o sentia, o lambiscava. Ele se encolhia, choramingava, mentia: ainda não estou maduro.

+ Está escuro e frio. Poderia ser a morte, se o amor nos permitisse esse luxo. Ele nos quer bem vivos, para que o louvemos.

+ Ao acaso, a esmo, no escuro, mesmo que nos descuremos, um dia a ela chegaremos: a morte é um porto seguro.

+ No porão mais escuro e frio da memória, os frutos não colhidos e o mel não provado abraçam-se tão tristemente quanto dois meninos órfãos.

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