PUBLICIDADE

Foto do(a) blog

Um manual prático para desastrados

O sonho de um soterrado

Foto do author Gilberto Amendola
Por Gilberto Amendola
Atualização:

Ele nunca dormiu bem naquele lugar. Tinha muito barulho de crianças chorando. Cheiro de comida e de cachorro molhado. Brigas eventuais no corredor. Treta por qualquer coisa. Por  uma lata de óleo. Cinco reais. Um copo de cerveja. Quase sempre era na faca que se decidia. Mas já teve pipoco de tiro.

PUBLICIDADE

Mas naquela noite tudo parecia tão diferente. Era um silêncio ou um vácuo qualquer.

No colchão, sem travesseiro, abriu uma revista com novidades de uma novela de 2016.

Amanhã acordaria cedo. O primo arrumou um serviço de ajudante geral. Era pegar uma coisa de um lugar e levar para o outro.No muque mesmo. Mania das pessoas de mexer no que está quieto. No fim do dia,  trinta conto mais o café. Almoço? Tomara.

Ouviu na tevê do quarto ao lado um repórter dizendo que o deputado era suspeito de desviar uma grana preta. Também tinha um radinho arranhando uma música sobre violência doméstica e paixão. No andar de cima,  um casal trepava perto dali.

Publicidade

Aquela sinfonia levava ao sono, que chamava um sonho, que guiava o cara até outra vida.

O despertador era um beijo de bom dia. O cheiro do café vinha da cozinha. A mulher, enrolada em uma toalha vermelha,dizia que ele estava atrasado, que precisava correr. Correr.

Ele virou pro lado e pensou: "Mas é feriado". Ele foi chacoalhado. E pediu calma. Ia levantar no seu ritmo. Tomar o café. Uma bela ducha e depois passear com o cachorro.Ele foi chacoalhado de novo.

O dia estava quente. Muito quente. Sentia o calor pelo corpo. Talvez fosse melhor tomar uma ducha primeiro. Fogos? De certo que não era Ano Novo.

Levantou-se. Achou estranho a porta do quarto fechada. Deve ter sido a mulher. Tentou abrir a porta. Não conseguiu. Bateu. Ouviu algo parecido com um grito. O filho sempre acorda agitado e cheio de energia. A porta não abria. Forçou.

Publicidade

Atrás da porta outra porta. Atrás da porta outra porta. Atrás da porta uma porta mais baixa. Poeira. Precisou dobrar os joelhos. Atrás da porta outra porta que ele só conseguiria passar rastejando.

Quando sentiu o focinho de um cachorro encostando o seu nariz entendeu que estava sonhando.

Tentou acordar.

Tentou acordar.

Abriu os olhos, mas tudo continuou escuro.

Publicidade

Não conseguiu gritar.

Agora ele era uma criança. E estava no colo da sua mãe.

Era embalado por ela.

Deixou-se engolir pelo escuro.

Soterrado.

Publicidade

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.