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Um manual prático para desastrados

Episódio 12: Uma outra vida é possível?

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Por Gilberto Amendola
Atualização:

Foi como pegar um filme no meio. Perguntei, com toda calma possível, se Fabiana entendia o que estava acontecendo ali. Acho que ela não entendeu minha pergunta. Não, ela não parecia ter um problema mental sério. Ela não parecia louca também. Nem alienada. Mas... Talvez Fabiana não fizesse parte daquele contexto. Talvez vivesse, verdadeiramente, uma outra vida ou história. Talvez pertencesse a um outro mundo. Mostrei a corrente que me prendia. Fabiana não se impressionou. - Foi coisa do Junior! Uma brincadeira de mau gosto - disse enquanto tirava uma chave do decote. - Seu irmão tem umas brincadeiras estranhas - resmunguei, mas não alterei a voz. Ela me libertou. Sentei na cama. Ao lado dela. A cena continha alguma intimidade. Espantoso. Essa proximidade não era algo tão estranho. Ou melhor: era estranho, mas era... familiar. - Você sabe o que está acontecendo aqui? - perguntei outra vez. - Sei. -Sabe? - Você sofreu um acidente de carro. Ficou internado uns dias. Deve ter perdido a memória. Acho que é normal, não é? Daí, minha mãe achou melhor que você passasse uns dias aqui. Aqui, na casa dela. Mas, amor, acho que já podemos ir para a nossa casa. Claro, se você quiser... Ouvi tudo aquilo com o coração tamborilando em ritmo sincopado. Eu estava lidando com uma pessoa... - Nosso filho está com saudade. Ele perguntou de você - Fabiana disse. - Filho? Que filho? Fabiana me olha com um olhar condescendente e me oferece uma colherada de Sucrilhos. Viro a cara. Odeio. - Nunca vi você negar um cereal - diz sorrindo. Talvez você não tenha notado, mas é aquele que você gosta. Aquele da caixa azul e vermelha. Aquela das cores que você não pode enxergar - completa. - Como não posso enxergar? Eu sei muito bem o que é um vermelho e um azul - respondo alterando um pouco a voz. Ela sorri e me chama de 'daltônico charmoso'. Quero rebater, mas acho mais premente perguntar de novo: "Que filho"? - Querido, a nosso filho, o Ricardinho. Olha, ele até pediu para deixar os livrinhos de colorir com você... Ele está com saudade de te contar onde estão as cores que você não pode ver. Olhei para o criado mudo e os livros estavam lá. Meus livros. -Desculpe, Fabiana. Acho que a gente tem um problema aqui...Tem uma confusão! Eu preciso sair daqui. Eu... - Não se preocupe com o trabalho, Lúcio. Está tudo certo na agência. Os seus funcionários estão cuidando de tudo e a campanha vai bem. - Meus funcionários? - Sim, sua equipe... -Fabiana, o que eu faço? - Você é um gênio do marketing político. Me levantei da cama. Suando. Queria sair correndo. Queria gritar. - Eu tenho uma agência? - Tem - e leva seu nome... Amor, você passou por um trauma. Bateu a cabeça. Com repouso e medicamento, tudo voltará a ser como era antes. - E como era antes? - Perfeito. - Fabiana, como a gente se conheceu? - Na escola. Na escola, dançando quadrilha. - E quando a gente começou a namorar? - Durante uma excursão. Depois de uma brincadeira de "beijo, abraço ou aperto de mão". - Aconteceu mais alguma coisa entre a gente nessa excursão? - Ah, Lúcio, para, não quero falar sobre isso... - Eu vou repetir a pergunta: aconteceu algo mais nessa excursão? - Claro que aconteceu... O ronco de Alencar, mais uma vez, preencheu o ambiente. Me senti tonto. Achei que ia desmaiar. Não quis demostrar fraqueza. Respirei e continuei perguntando. - O seu pai só dorme? - Ele nunca dormiu tanto. Acho melhor acordá-lo. - Isso, vamos acordá-lo - disse, puxando Fabiana pelo braço e para fora do quarto. A casa estava calma. Só o ronco de Alencar. Nem sinal de Isaías, Frederica, Joana ou Junior. Tudo muito estranho e incompleto. Apenas um homem dormindo na sala, sentado. Apenas um cuco quebrado - com sua mola triste saltando para fora do relógio. Apenas um gato. Um gatoandando pelo parapeito da janela. O gato que se arrepia ao me ver. O Sazerac quer me passar uma mensagem. Mia. Late.Eu não entendo. Ele se esgueira por uma fresta e já está na rua. Livre. Talvez tenha voltado a ser o meu cachorro. Fabiana está ao meu lado. Chama o pai que não atende. Me aproximo também.Pazuzu diz: é agora, vai! Chacoalho Alencar pelos ombros - com alguma violência. Primeiro, ele não reage. Ameaço um tapa. Ele abre os olhos antes que o tapa aconteça. Vocês sabem o que é um vórtice?

Continua

 

 

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