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Um manual prático para desastrados

Episódio 11: Memórias do cárcere (em algum lugar da casa)

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Por Gilberto Amendola
Atualização:

Quando acordei, o quarto era outro. Talvez algo mais também tenha mudado. Não sei. As coisas não param de mudar, não é? O hospital havia ficado para trás. Alguém tinha me tirado de lá. Não lembro como foi. Tudo aconteceu como um corte brusco. Na cena 1, hospital. Na cena 2, um quarto xis. Sem barulho de ambulância. Sem injeção. Sem nenhuma discussão. Estava em casa...mas não na minha. Esse é um quarto branco. Sem móveis. Apenas uma cama de canto - e livros para colorir em cima de um criado mudo. Não era, de certo, um quarto de hóspedes. Era um cativeiro. Um cativeiro com livros para colorir. Mas sem cigarros - nada é perfeito. Não foi difícil descobrir meu paradeiro. Um ronco quebrava o silêncio, entrava pela fresta da porta e preenchia todo o cubículo. Eu estava na casa do homem que dorme. Eu estava na casa que o Waze não encontra. Eu estava na casa em que cães se transformam em gatos. Eu estava na casa de Frederica. Tentei me levantar. Dolorido. Coloquei uma perna para fora da cama. A outra, não. Eu estava preso, acorrento pelo tornozelo. Pensei em gritar. Talvez meu grito acordasse Alencar. E, ao acordar Alencar, tudo voltaria aos eixos, tudo se desmancharia feito algodão e eu - novamente - estaria em casa. E, ao chegar em casa, ouviria o celular tocar. E, ao ouvir o celular tocar, não atenderia. E, ao não atender, eu não começaria a girar os pratinhos desse desastre. E, se por acaso, eu viesse a atender aquela ligação, não me restaria outra saída a não ser avisar: - Desculpe, foi engano. Mas a porta do quarto se abriu. A luz que vinha do corredor era intensa demais - e serviu como uma espécie de manto protetor. Tanto faz a escuridão ou essa luz intensa. Pensei ter visto o contorno do pássaro/anjo/ demônio que tem me perseguido nos últimos dias. Lembrei de Ricardinho - e temi pelo pior desfecho. Saindo da luz, tal qual uma santa ou um extraterrestre, vi uma mulher. Nas mãos, um tigela. Pensei: Sucrilhos. Se for, tomara que não esteja mergulhado em leite. Odeio leite. Os passos da mulher eram cautelosos. Ela tinha medo. Mais medo do que eu. Ainda assim, aproximou-se, oferecendo-me a tigela. Era Fabiana. E ao ver Fabiana pela primeira vez depois de anos... Nada aconteceu. Os sinos não dobraram, minha vida não começou a fazer sentido, nada mudou dentro de mim. Eu não me apaixonei por Fabiana. E essa não é uma história de amor. Quem vai querer saber de uma história que não é de amor? Fabiana me pareceu uma mulher normal. Não especialmente bonita. Feia? Também não. Branca demais - cor de quem quase não sai de casa. Cabelos pretos- levemente desgrenhados. Olhos tristes. Olhos que não fitavam os meus. Não tinha mais de 1,70 de altura. Quase sem seios. Uma tábua.O oposto da irmã. Queria que fosse a irmã. Não, não queria que fosse ninguém. Queria estar em casa. Fabiana sentou-se ao me lado. Colocou, suavemente as mãos na minha testa, imagino que para medir a temperatura do meu corpo. Meu estado não era febril. Notei que do pescoço dela balançava um colar - com a imagem do anjo/pássaro/demônio que vinha me assombrando. Gelei. Ela queria me dizer alguma coisa. Mas a voz parecia presa, encapsulada em um pote de maionese. Era minha função, meu dever, girar essa tampa e liberar aquela voz. Abrir a tampa sem usar muita força. Delicado. Se eu quisesse entender o que estava acontecendo, se eu quisesse sair com vida daquele lugar, eu precisava conversar com Fabiana. Em algum lugar da casa, talvez na sala, um homem estivesse roncando. Em algum lugar da casa, talvez no porão, um débil estivesse limpando sua coleção de facas. Em algum lugar da casa, talvez no banheiro, uma garota estivesse se tocando embaixo do chuveiro. Em algum lugar da casa, talvez na cozinha, uma mulher idosa estivesse passando o café. Em algum lugar da casa, talvez no jardim, um homem estivesse esfregando o próprio bigode e firmando um acordo com um anjo/pássaro/demônio. Neste lugar da casa, uma mulher me oferece uma colherada de Sucrilhos. Ela treme. Eu tomo a iniciativa possível e digo "oi". Ela abre os olhos como se tivesse ouvido o terceiro segredo de Fátima ou a fórmula da Coca-Cola. Com dificuldade, ele me devolve o "oi". A voz dela é agradável. E o diálogo a seguirnão foi algo comum...

Continua.

 

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