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Um manual prático para desastrados

A fila de formigas e a vida de Anita

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Por Gilberto Amendola
Atualização:

A fila de formigas na pia tem uma organização clássica. Uma atrás da outra feito crianças do primário. Anita nunca se sentiu deprimida. Anita é até pra cima. Mas aquela fila de formigas... Anita nunca teve disciplina e, talvez por isso, as coisas tenham dado uma estacionada em sua vida.

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Na idade dela, as amigas dela, já viviam em outro esquema, já eram menos amadoras na arte da sobrevivência. Anita sonhou com a rotina das formigas e pensou que talvez fosse a hora de arrumar as gavetas.

Quis a estabilidade das formigas.

Sem manual de instruções, Anita foi intuitiva. O que é preciso para ser uma pessoa mais sólida? Um trabalho melhor, um relacionamento mais sério, uma frequência relevante na academia, uma pós-graduação com alguma utilidade prática e visitas regulares aos pais no interior de Minas.

Anita tinha muito o que pensar. Deixou a fila de formigas pra trás e decidiu tomar um pouco de ar. A noite estava fria, mas era tudo o que ela precisava naquele momento.

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Na rua, viu a fila de carros na frente de uma casa noturna; viu a aglomeração de moradores atrás de um prato de sopa; viu a turma que descia de skate a ladeira ingrime; viu os policiais que revistavam torcedores de futebol; viu mesas de bar carregadas de chope; viu uma manifestação contra imigrantes sírios e viu um homem se atirando do viaduto.

Voltou pra casa. Não tinha nada muito específico na cabeça. Pensou em tomar um daqueles remédios que suas amigas tomavam também; pensou em arrumar uma briga na internet para desanuviar um pouco; pensou em tomar o restinho de uísque que havia sobrado da noite anterior; pensou em pedir comida. E pediu.

Antes que o delivery chegasse, Anita voltou à cozinha. A fila de formigas continuava lá, sólida, correta. Era uma fila patriota, era uma fila estável e equilibrada, eram formigas irritantemente bem sucedidas, eram engenheiras, advogadas, médicas ou artistas que sabiam ganhar dinheiro com a própria arte.

Anita levantou o dedinho e teve ganas de esmagar uma por uma. Refletiu sobre aquele genocídio e chegou a conclusão de que estava no seu direito soberano. Com o dedo indicador, foi esmagando, vagarosamente, formiga por formiga. A cada pressão do dedão, Anita sentia uma espécie de orgasmo nunca antes experimentado. Ela teria acabado com todas elas se a campainha não tivesse tocado, se a pizza não estivesse quentinha em sua porta.

Ao abrir a porta, notou que o entregador era uma formiga gigante. O formigão foi entrando sem pedir licença, deixou a pizza em cima da mesa da cozinha e notou o que havia acontecido com suas semelhantes.

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Chorou feito uma criança.

Anita disse que aquilo tinha sido um acidente, que ela havia perdido a cabeça e que...

O formigão olhou com raiva e gritou alguma coisa em uma língua desconhecida. Aquilo soou como uma maldição. Deve ter sido.

Antes, o formigão tivesse feito algo físico e definitivo.

Anita, lembrou do prazer que sentiu em esmagar formigas.

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No dia seguinte, Anita acordou e continuou sentindo no peito que estava sendo esmagada pela vida, feito uma formiguinha tola e sem propósito.

Mais tarde pensaria no que fazer com o corpo do entregador de pizza.

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