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Psiquiatria e sociedade

Opinião|Velhas tecnologias

A telemedicina veio para ficar. Há mais de um século.

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 Foto: Estadão

Há muitos anos a mãe de uma criança estava desesperada com a tosse de seu bebê, temendo que ele estivesse com a temível crupe, uma forma de inflamação que começa na laringe, passa pela traqueia e atinge os brônquios levando a dificuldade respiratória da criança. Normalmente não é fatal, mas pode ser bem assustadora - o que levou à mãe em questão a telefonar para a avó sem saber o que fazer. A avó imediatamente ligou para o médico da família relatando as "terríveis notícias". Não convencido de que seria necessário atendimento imediato no meio da madrugada, o médico pediu que a mãe o telefonasse, dizendo então para que ela pusesse a criança na linha, permitindo-lhe ouvir a tosse. "Não é crupe", diagnosticou ele, orientando as senhoras e garantindo uma noite mais tranquila para para todos.

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Essa história ocorrida nos EUA foi relatada na revista Lancet no ano de 1879, no que talvez tenha sido uma das primeiras defesas da telemedicina. No mesmo ano o Reino Unido já interconectava médicos, farmacêuticos, hospitais e enfermarias, estabelecendo a primeira rede profissional de uso do telefone, antes mesmo de seu uso comercial. A recepção do seu uso, no entanto, foi longe de unânime. Houve resistência de vários tipos, desde medo de perda de privacidade até de acurácia clínica. É evidente que a tecnologia prevaleceu, e o telefone firmou-se como parte inerente da prática médica. Há quem defenda inclusive o ensino da disciplina "medicina telefônica", capacitando os médicos nesse tipo particular de comunicação.

Agora o Conselho Federal de Medicina finalmente regulamentou no Brasil o uso de outras tecnologias para "assistência, educação, pesquisa, prevenção de doenças e lesões e promoção de saúde". Como dizem por aí, demorou. À medida em que as tecnologias vão sendo incorporadas pela sociedade progressivamente elas passam a ser usadas pelas pessoas no exercício de suas profissões, independente de ser ou não regulamentada. Dê uma olhada no celular de qualquer dermatologista e você verá o tanto de fotos de lesões de pele que os pacientes os enviam. Pediatras e ginecologistas, então, correriam o risco de ser presos se alguém visse o teor de suas consultas via Whatsapp. Radiologistas trocam entre si imagens e pedem opiniões. Grupos fechados para médicos nas redes sociais tornam-se verdadeiras juntas médicas debatendo casos complexos todos os dias.

Sempre haverá quem acredite ser um enorme avanço, quem queira ganhar dinheiro com isso e quem veja aí o fim da profissão. Essas reações, afinal, se alinham perfeitamente com as regras definidas pelo Douglas Adams sobre nossas reações às tecnologias: "1. Qualquer coisa que esteja no mundo quando você nasceu é normal e comum e é apenas uma parte natural de como o mundo funciona. 2. Tudo o que é inventado entre seus 15 e 35 anos é novo e emocionante e revolucionário e você provavelmente poderá fazer carreira nisso. 3. Qualquer coisa inventada depois de seus 35 anos é contra a ordem natural das coisas ".

 

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Aronson SH. The Lancet on the telephone 1876-1975. Med Hist. 1977 Jan; 21(1): 69-87. 

 D. Michael Elnicki , Sam Cykert , Barry Linger , Paul Ogden & Mark Hannis(1998) Effectiveness of a Curriculum in Telephone Medicine, Teaching and Learning in Medicine,10:4, 223-227

Resolução CFM.

 

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Leitura mental

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 Foto: Estadão

Douglas Adams, autor conhecido pelo Guia do Mochileiro das Galáxias, foi um dos mais brilhantes escritores pop do século XX. O filme homônimo lançado em 2005 não faz jus ao extremo talento desse escritor britânico capaz de aliar conhecimento científico, bom humor e análise crítica em doses cavalares. Além do Guia... ele escreveu roteiros para o seriado Doctor Who, obras sobre ecologia, linguística, a série policial intergaláctia do detetive Dirk Gently, além de artigos para jornais e revistas. Uma boa amostra dessa produção esparsa - de onde retirei a lei que encerra o artigo acima -está reunida no livro O salmão da dúvida (Arqueiro, 2014).  São textos, artigos e reportagens que revelam, talvez até mais que sua obra ficcional lançada no Brasil, a profundidade de sua inteligência e capacidade de análise.

Opinião por Daniel Martins de Barros

Professor colaborador do Dep. de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP. Autor do livro 'Rir é Preciso'

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