EXCLUSIVO PARA ASSINANTES
Foto do(a) coluna

Psiquiatria e sociedade

Opinião|Um brinde ao esgoto

PUBLICIDADE

Foto do author Daniel Martins de Barros
Atualização:

Volto ao tema da crise hídrica, novamente com uma notícia que as autoridades não têm coragem de dar: mais cedo ou mais tarde você vai acabar bebendo água de esgoto.

PUBLICIDADE

Às vezes tenho a sensação que estamos todos vivendo um movimento coletivo de negação, fingindo não ver o que está evidente à nossa frente. As notícias negativas se sucedem, mas aparentemente todos nós sentimos que o problema não é tão sério, tão iminente ou tão próximo como de fato é. Pensamento mágico em massa. Mas eis que um artigo recente da revista Scientific American nos propõe uma solução que, quando aventada pelas autoridades brasileiras, tronou-se munição nas mãos de adversários políticos: vamos beber do esgoto.

Um dos lugares que mais sofre com secas no Estados Unidos, San Diego (Califórnia) vem há sete anos testando uma estação piloto, chamada Advanced Water Purification Facility, e concluiu que a purificação do esgoto doméstico é capaz de fornecer água mais limpa do que se tem hoje, a custos menores do que diversas outras alternativas. O processo envolve filtragens múltiplas e progressivas, por tubos tão finos que não permitem sequer a passagem de vírus, complementado por oxidação intensa e exposição à luz ultravioleta, tornando-a mais pura do que a água que bebemos usualmente.

Mas o maior desafio não parece ser purificar esgoto, e sim superar uma das emoções mais básicas do ser humano: o nojo. A aversão que uma fonte potencial de contaminação gera em nós é universal (todo mundo sente), involuntária (impossível de evitar) e estereotipada (ocorre mais ou menos da mesma forma todas as vezes). Até os cegos fazem a mesma cara de nojo, como demonstrou Paul Ekman. Isso mostra que essa é uma emoção muito primitiva, incrustada em nosso cérebro desde tempos remotos e, por tal razão, bem difícil de combater. É natural: sentir nojo protegia nossos ancestrais de muitas fontes de doença; assim, quem não ficava enojado com nada adoecia e morria mais, não sobrevivendo para deixar descendentes.

Historicamente existem duas saídas para superar essa barreira: planejamento ou urgência.

Publicidade

A primeira foi utilizada também na Califórnia, na região de Orange County, quando se percebeu nos anos 90 do século XX que as reservas hídricas iam de mal a pior. Resolveram investir em purificação de esgoto, para desagrado de nada menos do que 70% da população. Em 2008, no entanto, quando entrou em operação, a estratégia tinha apoio de 100% dos cidadãos. Como? Em primeiro lugar eles recolheram dados de sete anos de purificação de água, e depois passaram os 10 anos seguintes conversando com as pessoas, mostrando os resultados e discutindo as opções. Ou seja, dezessete anos investidos em antecipação do problema. Já a segunda ocorreu na Namíbia, no fim dos anos 50 (séc XX), quando a seca acabou com os reservatórios de água em semanas. Com a ausência de alternativas o país africano se tornou o primeiro a adotar essa saída em larga escala, o que ocorre até hoje.

A desgraça é que parece que, no Brasil, estamos mais próximos da África de 70 anos atrás do que da Califórnia recente. Não chega a ser surpresa.

Heffernan O. Bottoms up. Sci Am. 2014 Jul;311(1):68-75. PMID: 24974713

Opinião por Daniel Martins de Barros

Professor colaborador do Dep. de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP. Autor do livro 'Rir é Preciso'

Tudo Sobre
Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.