EXCLUSIVO PARA ASSINANTES
Foto do(a) coluna

Psiquiatria e sociedade

Opinião|Soul, a melhor animação da Pixar, manda os adultos falarem com as crianças

Primeiro protagonista negro da Pixar, o professor Joe Gardner tem uma lição importante para as crianças; mas os adultos que terão de ensiná-la (e só depois de aprendê-la)

PUBLICIDADE

Foto do author Daniel Martins de Barros
Atualização:

Pixar. Divulgação. Foto: Estadão

Soul, o novo filme da Pixar, escrito e dirigido pelo atual chefão do estúdio, Pete Docter, foi um dos meus grandes presentes de Natal: eu gosto muito de animação, há tempos adoro o Docter e sou fã incondicional de jazz desde adolescente. A estreia na Disney+ programada para 25 de dezembro parecia coisa do Papai Noel.

PUBLICIDADE

Mas embora o filme seja talvez o melhor do diretor (quiçá da Pixar) - que já surpreendera em Up! e se superara em Divertidamente - suas qualidades, das quais trataremos em instantes, dividem atenção com outra característica inusitada: não é feito para crianças. Digam o que quiserem, mas esse não é o público alvo de Soul.

Desde de Up!, que tratava de envelhecimento e luto de forma muito profunda para um desenho, passando por Divertidamente, que introduzia temas complexos de psicologia das emoções em sua trama, Docter vinha testando os limites da tendência atual de acrescentar camadas de leitura para adultos nas animações infantis. Só que dessa vez ele cruzou a linha e parece ter feito o contrário, um filme para adultos com o formato infantil. Um filme excelente, diga-se. Mas no qual os pequenos rapidamente perdem o interesse por terem dificuldade de acompanhar a trama, não captarem os significados e não verem sequer uma criança na tela com a qual se identificar ou para quem torcer.

Joe Gardner, primeiro protagonista negro da Pixar, é um músico frustrado porque, incapaz de seguir a carreira numa banda de jazz como sonhava, limita-se a dar aulas de música numa escola. Até que sofre um acidente e vai para o além, mas foge do pós-vida e acaba no pré-vida, onde as almas ficam antes de nascer. Ali ele se disfarça como um dos tutores locais, pessoas responsáveis por mostrar a vida às almas não-nascidas, convencendo-as a nascer, e para seu desespero fica responsável por uma alma teimosa - a 22 - que não vê qualquer sentido na vida e se recusa a encarnar - Madre Teresa, Abraham Lincoln e até Carl Jung falharam em persuadi-la.

A história segue a relação de ambos numa daquelas tramas rocambolescas: atenção para o spoiler! - Gardner e 22 vêm para a Terra, ela encarnada em seu corpo e ele num gato-terapeuta. Enquanto trabalham para desfazer essa confusão, ela tem um vislumbre de sua vida, de seus relacionamentos, as pequenas e grandes lutas e recompensas que ele trava e recebe todo dia. Até que Gardner finalmente tem sua grande chance e entra para a banda de Dorothea Williams, uma diva do jazz, e o filme revela seu tema de fato.

Publicidade

Gardner faz uma apresentação perfeita, mas parece um pouco decepcionado ao final. "E agora?", pergunta à líder da banda. "E agora amanhã fazemos tudo de novo", ela responde com simplicidade. Ele fica perplexo. Era isso então? Meu sonho era algo assim, como um emprego diário? Em resposta Dorothea Williams conta para ele uma história que é a chave de interpretação do filme: um peixe jovem procurou um velho e sábio peixe pedindo orientação, pois queria conhecer o oceano. "Você já está nele", teria dito o ancião. "Não.", indignou-se o peixinho, "Isso aqui em volta é só água... eu quero conhecer o oceano".

Sim, é complexo. (Imagine explicar isso para as crianças já cansadas a essa altura do filme). Mas ainda assim é maravilhoso entender que a vida é a soma dos pequenos momentos. Seu significado não vem de um clímax espalhafatoso, é construído diariamente. A obra de uma vida é quase sempre nada mais que o conjunto das realizações cotidianas. E como fica minha missão, meu objetivo na vida, meu chamado? Qualquer que seja, ele nada mais é do que (e somente será visível nos) minúsculos detalhes, atos, momentos que se somam cotidianamente e dão sentido ao todo. Como explica uma alma chefe, "A missão não tem nada a ver com um propósito. Ah, esses tutores e suas paixões...".

O filme pode não ser muito apropriado para a compreensão das crianças (embora só divulgar o jazz já seja um mérito e tanto), mas sua mensagem talvez esteja entre as mais urgentes que temos para elas, pois quanto mais cedo puderem trocar o peso de terem que cumprir um propósito pela possibilidade de apenas viver uma vida significativa, mais livres - e realizadas - elas crescerão.

Opinião por Daniel Martins de Barros

Professor colaborador do Dep. de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP. Autor do livro 'Rir é Preciso'

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.