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Psiquiatria e sociedade

Opinião|Saber improvisar salva vidas

Uma lesão cerebral obrigou um dos melhores guitarristas do mundo a aprender a tocar novamente. E ele voltou ao topo.

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Atualização:
 Foto: Estadão

Quando tinha apenas 10 anos de idade Pat Martino começou a apresentar alterações súbitas do comportamento. Por vezes sentia cheiros estranhos onde ninguém sentia nada, apresentava confusão mental e passou a ter crises convulsivas. O conhecimento sobre o cérebro era incipiente na época, metade dos anos 1950, e ele foi submetido a diversos tipos de tratamentos, chegando a ser internado em alas psiquiátricas por conta de seus sintomas.

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Filho de um músico, Pat queria deixar seu pai orgulhoso e lutou contra a doença, tornando-se um dos mais virtuosos e aclamados guitarristas de jazz - sua habilidade criou um novo padrão de performance para o instrumento. Até que em 1980, após uma convulsão que quase o matou, finalmente foi identificada a má-formação vascular no lobo temporal esquerdo de seu cérebro - artérias e veias encontravam-se emaranhadas naquela região - responsável por todos seus problemas neuropsiquiátricos.

A cirurgia para salvar sua vida removeu grande parte dessa área cerebral, e Pat acordou sem se lembrar de quem era, qual sua profissão - não sabia mais tocar guitarra - e sequer reconhecia seus familiares. Voltou a morar com o pai que, frustrado, passou a colocar seus antigos discos na esperança de que sua memória voltasse. Gradativamente ele reaprendeu o instrumento; e de forma surpreendente em pouco mais de dois anos voltou a ser um virtuose da guitarra. Em 1987 gravou o álbum "The return", e seguiu lançando novos discos e fazendo shows até hoje.

Seu caso foi discutido numa revista médica de neurocirurgia, incluindo análise das imagens mostrando o tamanho da lesão em seu cérebro, bem como os resultados dos testes neuropsicológicos que revelavam a presença até hoje de funções cerebrais prejudicadas. Se mesmo assim ele retomou sua vida, seu trabalho e sua funcionalidade global foi em grande parte por conta de seu treinamento prévio como músico de jazz.

A neuroplasticidade, o processo de remodelamento das conexões entre os neurônios para otimização das redes cerebrais, é fundamental para a recuperação em casos de lesão cerebral. O treino prévio de Pat Martino na arte do improviso - elemento central no jazz - que demanda ativação e interconexão de diversas áreas do cérebro, sendo inclusive proposta como parte da musicoterapia, parece ter sido a grande diferença em sua história segundo os autores dos artigos científicos.

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Achei que essa história de caberia bem no Dia Internacional do Jazz. Afinal, ela é uma celebração da vida que renasce quando somos capazes de improvisar.

Links para o artista:

Spotfy: https://spoti.fi/2PCi0jq

Deezer: https://bit.ly/2GT3EIF

Youtube: https://bit.ly/2DH1Mka

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Galarza M, Isaac C, Pellicer O, Mayes A, Broks P, Montaldi D, Denby C, Simeone F. Jazz, guitar, and neurosurgery: the Pat Martino case report.World Neurosurg. 2014 Mar-Apr;81(3-4):651.e1-7.

Duffau H. Jazz improvisation, creativity, and brain plasticity. World Neurosurg. 2014 Mar-Apr;81(34):508-10.

 

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Leitura mental

 Foto: Estadão

Um dos valores impregnados na história do jazz é a igualdade - não só pelo entrosamento que é necessário entre os músicos, mas sobretudo por suas origens negras numa época de intenso racismo. Um interessante episódio da história  pouco conhecido que reúne jazz, preconceito e a força da música é contado no livro Soldados do jazz - Os heróis negros do Harlem na Primeira Guerra Mundial, do jornalista francês Thomas Saintourens (Vestígio, 2018). Os soldados negros não tinham treinamento militar - seu treinamento ficou a cargo do exército francês. Por outro lado os franceses não conheciam o jazz e ficaram embasbacados com a música daqueles homens. O livro reúne documentos da época para recontar essa história de diferenças, integração, e luta - pela liberdade e  contra o preconceito. Tudo a ver com o jazz.

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Opinião por Daniel Martins de Barros

Professor colaborador do Dep. de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP. Autor do livro 'Rir é Preciso'

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