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Psiquiatria e sociedade

Opinião|Rir da própria desgraça

Rir da própria desgraça nem sempre é fácil, mas é uma forma eficaz de tentar reavaliar situações negativas pela quais estejamos passando.

Foto do author Daniel Martins de Barros
Atualização:

Recentemente andamos conversando sobre técnicas para lidar com as adversidades - principalmente baixar expectativas e manejar reações emocionais. Uma das mais sofisticadas e eficazes maneiras de manejo das emoções negativas, a reavaliação cognitiva, voltou a me chamar atenção num estudo sobre humor recentemente publicado.

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Sabemos que o riso é uma forma de lidar com ambiguidades que geram tensão, sobretudo quando são situações inesperadas. O riso de nervoso é um efeito colateral desse mecanismo, e fenômenos sociais como as piadas que se proliferam após mortes de figuras públicas ou tragédias nacionais testificam o mesmo fenômeno. É também do senso comum dizer que o brasileiro adora rir da própria desgraça, e que o humor nacional seria vitaminado pela riqueza de adversidades a que somos submetidos como nação, num paralelo histórico que explicaria a existência do famoso humor judaico. Desconheço estudos formais sobre essas possibilidades, mas o estudo do papel do humor na reavaliação cognitiva pode bem estar ligado a isso.

Pesquisadores alemães resolveram testar se o humor poderia mesmo atenuar a carga negativa de determinados estímulos, ou ser rir seria apenas uma forma de distrair a mente, tentando ignorar a fonte de desconforto. Para tanto, apresentaram a voluntários imagens de carga emocional negativa, como uma serpente pronta para dar o bote, uma criança ferida, tragédias naturais etc. Para metade dos voluntários havia uma legenda explicando a foto de forma seca, para outra metade havia uma legenda brincando com a imagem - sob a serpente, por exemplo, lia-se "Quando acabam os ovos no supermercado, Henrieta fica muito brava". A análise dos dados mostrou que as pessoas apresentadas aos estímulos desagradáveis acompanhados de uma piada - mesmo sem graça - avaliavam-nos como menos negativos, sendo significativamente menos afetados emocionalmente. Mas não se tratava de mera distração: testando se os voluntários posteriormente recordavam-se de quais imagens tinham visto, os cientistas constataram que a memória dos que leram as legendas bem humoradas era ainda melhor do que a dos os outros.

Faz sentido: na reavaliação cognitiva nós tentamos nos colocar distantes do problema, olhando-o por outros pontos de vista e buscando interpretações alternativas. O humor faz exatamente isso - inverte perspectivas, surpreende com ideias inesperadas - e nesse processo ajuda efetivamente a repensar significados - mesmo os negativos. Rir da própria tragédia, portanto, pode ser uma forma de lidar com o problema sem deixar de pensar sobre ele. Um dos exemplos mais intensos que me vem à mente é o da comediante americana Tig Notaro, retratada no documentário da Netflix "Tig". Depois de uma grave infecção intestinal que quase a matou, Tig perdeu a mãe subitamente; como se não bastasse, logo na sequência ela descobre que está com câncer de mama e tem um show de stand up para fazer nos próximos dias. A humorista resolve então usar sua tragédia pessoal como material para a apresentação, fazendo piadas agridoces com sua dramática biografia recente. O show é um sucesso estrondoso, ela é alçada ao estrelato e consegue se reerguer de forma surpreendente.

A maioria de nós não tem o talento de Tig para fazer comédia com as adversidades, e os problemas que enfrentamos não são simples fotos com comentários jocosos. Mas quando quisermos - ou precisarmos - repensar algo que estamos enfrentando, rir pode ser o melhor remédio.

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Opinião por Daniel Martins de Barros

Professor colaborador do Dep. de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP. Autor do livro 'Rir é Preciso'

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