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Psiquiatria e sociedade

Opinião|Quem tem medo de eletrochoque?

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Atualização:

Você já ouviu falar em eletroconvulsoterapia (ECT)? Sim, o velho eletrochoque, que - felizmente - continua sendo utilizado nos hospitais mais sérios do mundo. Mas que - infelizmente - ainda é cercado de preconceito e criticado por pessoas que ignoram as condições de sua aplicação, as indicações e, sobretudo, a eficácia e segurança. Deixe-me então dizer algumas coisas.

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Cegadas por uma ideologia burra apesar de supostamente bem intencionada (promover a humanização em saúde mental), campanhas contra ECT só fazem aumentar o preconceito, o medo e o estigma, contaminando todo o campo de tratamentos biológicos em psiquiatria e levando à desumanização, ao impedir que doentes graves sejam adequadamente tratados.

A culpa é, em parte, do Romantismo. Na aurora desse movimento, influenciada pela atmosfera gótica, uma jovem de 18 para 19 anos, então chamada Mary Wollstonecraft Godwin, passava férias com seu futuro marido, Percy Shelley e o escritor Lord Byron, quando este lançou o desafio de que cada um escrevesse uma história de fantasmas. O ano era 1816, e a medicina estava deslumbrada com a eletricidade - domesticada há pouco pela ciência. Luigi Galvani conseguira fazer rãs mortas se mexerem, experiência repetida com humanos por seu sobrinho Giovanni Aldini, que obtivera movimentos em membros e face estimulando o cérebro de cadáveres. Assim inspirada, Mary escreveu o que alguns consideram a primeira obra de ficção científica moderna, ao contar a história de um estudante que junta partes de diversos cadáveres e, usando eletricidade, o faz viver. Seu nome, Victor Frankenstein. Deve ter começado aí a o medo das pessoas do uso antiético da eletricidade na medicina.

Em meados do século XX, quando o eletrochoque começou a ser utilizado, sua eficácia empolgou tanto os médicos que ele passou a ser aplicado indiscriminadamente, sem indicações precisas e sem cuidados adequados. Além disso, não raras vezes era uma forma de punição em pacientes agressivos. O movimento da anti-psiquiatria dos anos 60 e 70 utilizou-se disso como um dos argumentos para denunciar os abusos dos psiquiatras. No entanto as indicações foram sendo aprimoradas, os cuidados anestésicos melhorados, fazendo dele um tratamento hoje com eficácia comprovada, indolor e de recuperação rápida. Obviamente, como qualquer tratamento, tem efeitos colaterais. Mas é irresponsável acusá-lo de ser antiético ou desumano. Antiético e desumano é privar pessoas do mais eficaz tratamento disponível.

Diversas outras técnicas utilizando eletricidade e eletromagnetismo estão sendo cada vez mais estudadas na disciplina chamada neuromodulação. O primeiro livro brasileiro sobre o tema - bibliografia do post de hoje - será lançado nesta semana, durante o III Simpósio Internacional de Neuromodulação, realizado na Universidade Mackenzie. Os autores são neurologistas e psiquiatras brasileiros, um deles professor em Harvard, que vêm ajudando a desenvolver esse campo que consegue ser, ao mesmo tempo, antigo e inovador, promissor e estigmatizado, temido e esperado.

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Torço para que as pesquisas avancem para que mais pessoas sejam beneficiadas, e também para que a sociedade o fiscalize de forma rigorosa mas sem preconceito, lembrando que, em saúde, não há ética sem técnica.

Fregni F, Boggio PS, Brunoni AR. Neuromodulação terapêutica: Princípios e Avanços da Estimulação Cerebral não Invasiva em Neurologia Reabilitação, Psiquiatria. São Paulo:Sarvier, 2011.

Opinião por Daniel Martins de Barros

Professor colaborador do Dep. de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP. Autor do livro 'Rir é Preciso'

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