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Psiquiatria e sociedade

Opinião|Quando a culpa é do cérebro

Há lesões cerebrais que de fato tornam os pacientes impulsivos. Mandá-los para cadeia não adianta nada.

Foto do author Daniel Martins de Barros
Atualização:

Coleção Jack e Beverly Wilgus Foto: Estadão

Você conhece o sujeito dessa foto? Ele é tão famoso que não há livro sobre neurociência que não cite seu caso. Seu nome é Phineas Gage, e ele tinha o arriscado trabalho de explodir rochas, abrindo túneis para ferrovias. Funcionava assim: com uma espécie de furadeira cavavam um buraco profundo na rocha. Dentro dele colocavam pólvora e deixavam um pavio para fora - depois, acendiam o pavio e imagino que saíssem correndo enquanto tapavam os ouvidos. Para socar a pólvora até o fundo eles usavam uma barra de ferro, como essa que ele segura na foto, mas protegiam a carga explosiva com areia, para que as faíscas do ferro contra a rocha não causasse uma explosão fora de hora. Mas em 1848 alguém esqueceu da areia. O atrito de fato causou a ignição da pólvora, transformando a barra de ferro num projétil que atravessou a cabeça de Phineas Gage. Para surpresa de todos ele não morreu, e após algumas semanas sob tratamento retomou a vida normal. No entanto seu comportamento mudou - os relatos variam (estima-se que muitos sejam exagerados), mas parece que ele se tornou mais instável, hostil, como se sua personalidade tivesse sido transformada.

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Em que pesem os exageros, o caso se tornou conhecido por ilustrar como nossa personalidade depende da integridade do cérebro. Independente da teoria sobre a natureza humana que se queira adotar - filosófica, psicológica, astrológica, ayurvédica - se o sistema nervoso central desafina não há meios de a alma se manter harmoniosa.

Depois de ser linchado na praça pública das redes sociais, descobriu-se que o homem que foi pego quase vinte vezes por abusar de mulheres em público em São Paulo tem histórico de traumatismo crânio-encefálico grave. Segundo o pai, ele chegou a ficar em coma e passar por neurocirurgia, e desde então mudou de comportamento - ficou calado e agressivo. Ele mesmo disse na delegacia que passou a "sentir necessidade" de praticar tais atos após o acidente.

Eu sei, parece desculpa esfarrapada. Alegar insanidade é tão antigo que já fizeram isso na Odisseia, na Bíblia, é golpe conhecido. Mas no caso dele pode bem ser verdade.

Evidente que sem examiná-lo pessoalmente não é possível ter um diagnóstico preciso, mas a história bate com o comportamento apresentado, sobretudo com a evidente falta de autocontrole. Senão vejamos: o sujeito fez isso de forma recorrente, em público, na frente dos outros, é pego dezenas de vezes e continua fazendo mesmo assim, do mesmo jeito. E depois de passar a semana inteira sendo o assunto nacional, com o rosto exposto todos os dias na mídia, volta a fazer a mesma coisa. Do mesmo jeito. Suspeitar de sua integridade mental é o mínimo a fazer.

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Pois de fato lesões cerebrais podem levar a comportamento impulsivo, particularmente na esfera sexual. No chamado transtorno orgânico da personalidade, após uma doença ou lesão cerebral o paciente muda sua forma de ser. Entre outras coisas pode apresentar apatia, irritabilidade, perda de autocontrole, passando a agir em função de seus desejos e impulsos sem considerar as consequências para os outros e para si mesmo, ignorando as convenções sociais. Parece ou não?

Isso não significa que necessariamente eles não respondam por seus atos. É preciso realizar uma perícia para que se avalie se de fato existe doença, e se ela prejudica ou impede o autocontrole para os atos em questão. Se não for o caso, o processo segue. Mas se for, em vez de receber pena a pessoa pode ser enviada para uma medida de segurança para ser compulsoriamente tratada, seja ambulatorialmente ou em internação (a depender do crime e da doença), para garantir sua melhora e a segurança de todos. Longe de ser impunidade, o nome disso é Justiça.

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Leitura mental

 Foto: Estadão

"O cérebro é uma interface entre o etéreo e o orgânico, em que os sentimentos e as lembranças que compões o tecido inefável da experiência são transformados em bioquímica molecular", afirma o psiquiatra, professor e pesquisador Jeffrey A. Lieberman, unindo a elegância na prosa ao rigor na ciência no recente livro Psiquiatria - Uma história não contada (WMF Martins Fontes). Com ajuda do escritor e neurocientista Ogi Ogas ele conta um pouco das idas e vindas das visões médicas sobre os transtornos mentais, dividindo-as em três partes: A história do diagnóstico, A história do tratamento e A psiquiatria renasce. Os fatos apresentados frequentemente vêm ilustrados com casos, biografias, filmes e livros populares, tornando as ideias acessíveis a todos. E sem perder o rigor.

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Opinião por Daniel Martins de Barros

Professor colaborador do Dep. de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP. Autor do livro 'Rir é Preciso'

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