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Psiquiatria e sociedade

Opinião|Porque aceitamos a corrupção - como a visão curta cria uma nação desonesta

A corrupção persiste no Brasil porque você e eu a toleramos. E achamos que não há problema em pequenos atos desonestos quando os avaliamos isoladamente. Só olhando para o todo é que conseguiremos ver o tamanho do problema e, quem sabe, mudar de atitude.

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Atualização:

Todos os dias surgem novos dados - "estarrecedores" - sobre a corrupção sistêmica na política brasileira. Os cálculos falam em oitenta e cinco bilhões de reais por ano. R$ 85.000.000.000,00. Para colocar em perspectiva, um trabalhador brasileiro ganha em média pouco mais de dois mil reais por mês. Em média, guarda pouco menos de 10% disso. Se conseguisse poupar um décimo de sua renda anual, juntaria dois mil reais no ano. Ou seja, no Brasil rouba-se por ano o equivalente à poupança de mais de quarenta milhões de trabalhadores. Brasileiros roubando brasileiros. Sim, porque o Brasil não existe, o que existe somos nós - a nação é você, sou eu, seus pais, vizinhos, amigos. Então, como é possível que todas as pessoas condenem a corrupção e ainda assim construam um país tão corrupto?

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As explicações são muitas, de várias ordens, em diversas áreas do saber. Com certeza não existe uma causa isolada, mas um conjunto de fatores que contribuem para isso. Um deles, ninguém ignora, é que no fundo todos nós aceitamos corrupção. Quando chega-se à escala das potências de dez, como temos visto, nos indignamos, mas a verdade é que isso acontece num ambiente social em que quebrar regras é a regra. De colar numa prova a comprar recibos médicos, da propina para o guarda ao uso de material do escritório para fins particulares, tendemos a desconsiderar essa corrupção comezinha como um verdadeiro problema. E daí para o petrolão é só uma questão de escala.

Mas isso pode mudar se olharmos o quadro de maneira mais ampla. Quando desviamos o foco dos atos isoladamente e avaliamos o todo, nosso comportamento tende a mudar. Num estudo publicado esse ano, pesquisadores americanos testaram a influência das técnicas de autocontrole no comportamento moral. Entendendo a corrupção como um dilema na tomada de decisão entre o ganho fácil imediato (ao ser desonesto) e os benefícios de longo prazo (de ser honesto), eles imaginaram que as conhecidas técnicas de antecipação ao problema e visualização do todo poderiam reduzir a opção pela desonestidade. Em diversos experimentos, apresentavam aos sujeitos situações em que poderiam ou não agir de forma ética (mentir numa negociação, enrolar no trabalho, obter vantagem sobre colegas etc). Variando os cenários, perceberam que quando as pessoas eram levadas a pensar previamente no tema da corrupção elas agiam de forma menos desonesta, como se tivessem se preparado para resistir à tentação. Mas isso acontecia apenas quando se mostrava para elas que os atos de corrupção não são atitudes únicas; ao contrário, eles se somam ao longo do tempo. Assim, mesmo que as atitudes sejam pequenas, juntas elas formam um universo completo de corrupção, com inevitável prejuízo social.

Difícil mudar. Assim como quem quer emagrecer tem que entender que um brigadeiro hoje não é um docinho inocente, porque se soma aos bombons, sorvetes e guloseimas ao longo do tempo, e ainda tem que se preparar para lidar com tentações, também nós só conseguiremos combater de fato a corrupção ao assumirmos de vez que cada pequeno ato compõe uma trama ampla, que vai da pequena comissão por fora até os grandes desvios nas licitações.

Mas quem está disposto a pagar o preço de realmente abrir mão dos prazeres imediatos, não é?

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Opinião por Daniel Martins de Barros

Professor colaborador do Dep. de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP. Autor do livro 'Rir é Preciso'

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