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Psiquiatria e sociedade

Opinião|Once upon a time - o aggiornamento dos contos de fadas

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Atualização:

Estou assistindo com entusiasmo a série Once upon a time. Pensada para atrair um público mais jovem, a produção mirou no que viu a atingiu o que não viu: a estreia rendeu o primeiro lugar ao canal Sony entre o público brasileiro de 25 a 49 anos. Não sei se o ritmo se manterá ao longo da temporada, mas o início é promissor: uma maldição lançada sobre os personagens dos contos de fadas os transfere para o nosso "mundo real"; eles trazem consigo suas histórias mas não sabem - nem se perguntam - de onde vieram. Presos no tempo, são condenados a reviver continuamente seus dramas essenciais - "Finais felizes, nunca mais", diz a bruxa.

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Existem diversas chaves de interpretação para os contos de fada - psicanalíticas, sociológicas, pedagógicas e até marxistas. Há os que acham que eles ajudam as crianças a entrar em contato com seus medos, outros que vêem neles instrumentos de propaganda dos sistema. Eu vejo sobretudo a paixão humana por histórias. Desde a Ilíada e a Odisseia, passando pelas narrativas bíblicas, as novelas de cavalaria, o romance moderno e o sucesso mundial as séries e novelas, as pessoas adoram acompanhar a história de personagens mais diversos - seja o herói impossível, seja o semelhante num reality show. A publicidade vem se dando conta disso, e cada vez mais campanhas acompanham histórias de protagonistas que se desenvolvem no tempo.

Mas o que achei mais interessante na proposta do seriado é o paralelo, que até aqui vem sendo muito bem feito, entre o conto original e seu aggiornamento. Como cada episódio mostra simultaneamente os personagens como eram no mundo da fantasia e como estão em sua nova vida real, isso permite aos roteiristas resgatar a própria essência dos temas, que soam um pouco datados nas histórias antigas. Por exemplo: a bruxa má que espalhava medo controlando o poder das trevas, agora é prefeita da cidade, e impõe o mesmo medo controlando o poder institucional. Se na história de Rumpelstiltskin a mocinha, arrependida de ceder ao imediatismo, tem que vencer pela esperteza de um mago, no mundo real é a esperteza de advogados que pode livrá-la do contrato abusivo. Assim, os elementos medievais, como pestes, florestas, lobos e carestia, dão lugar a temas modernos como o estresse, mundo corporativo e violência urbana para traduzir, de forma contextualizada, os mesmos dramas universais como medo, solidão, carência e desejo. E a maldição da bruxa má, de acabar com a possibilidade de finais felizes ao eliminar a magia, é derrotada quando o poder mágico é substituído pelo poder da razão, da urbanidade, da democracia e da ciência.

Talvez esse poder, das instituições modernas, também não passe de um conto da carochinha. Mas hoje é o que temos de melhor, e que tem se revelado mais eficaz do que as velhas poções mágicas. Acho que vem daí o sucesso da série entre o público adulto - renovar a esperança de haver finais felizes mesmo num mundo onde não há mais magia.

Opinião por Daniel Martins de Barros

Professor colaborador do Dep. de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP. Autor do livro 'Rir é Preciso'

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