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Psiquiatria e sociedade

Opinião|O nome social e o nome de Cristo

Várias instituições e Estados no país permitem que os transexuais e travestis usem seus nomes sociais. Querer proibir isso não é ser religioso: é ser estúpido.

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Atualização:

É triste reconhecer a estupidez humana - não bastasse ter que me deparar com a idiotice como qualquer pessoa que ande sobre a Terra (especialmente em nossas vizinhanças), por força de ofício vejo-me forçado não só a encará-la, mas contemplá-la e por vezes parar para pensar sobre alguma asneira em particular.

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É o caso da absolutamente estúpida iniciativa de deputados federais de suspender o decreto que permite o uso do nome social por travestis e transexuais. O texto do projeto legislativo diz que a motivação é legal, alegando que o decreto teria sido feito de forma juridicamente inadequada. As assinaturas do projeto apontam numa direção diferente, fazendo crer que a motivação é religiosa, uma vez que a bancada evangélica é que está por trás dele. Mas uma análise um nadinha melhor mostra que a motivação só pode ser a estupidez.

Em primeiro lugar há que se entender o seguinte, de uma vez por todas: a sexualidade humana é muito mais complexa do que se aprende nas aulas de ciência no primário, "homem é XY, mulher é XX". Tem gente que nasce com pênis, cromossomo XY, se comporta como homem e tem atração sexual por mulheres. Quase metade das pessoas, é verdade. Mas essas variáveis todas podem se embaralhar: nascer com pênis, cromossomo XX, se comportar como mulher, gostar de homem. Nascer menina, XX, viver como homem, gostar de mulher. A complexidade do cérebro e mente humana, da mesma forma que nos levou além dos impulsos biológicos para violência e criou a política, nos leva além da determinação biológica do comportamento sexual. Transexuais são pessoas que, de alguma forma, não se sentem totalmente em conformidade com o sexo que nasceram. Na 10 a. edição da Classificação Internacional de Doenças (CID) esse descompasso é considerado um transtorno mental, ao passo em que na mais recente classificação da Associação Americana de Psiquiatria doença é apenas a disforia, o desconforto patológico que tal situação causa, direção em que deve seguir a próxima edição da CID. Provavelmente, como aconteceu com o homossexualismo, essas pessoas com o tempo deixarão de ser consideradas doentes. (O que pode parecer apenas um grande benefício não é tão simples - quando o transexual não for considerado portador de uma doença, como garantir que o SUS ou os planos de saúde paguem pelas cirurgias de mudança de sexo, por exemplo? Discussão para outro texto).

Tudo isso só para dizer que discordar da nossa biologia não é prerrogativa da comunidade LGBT. Todos fazemos isso o tempo todo, em áreas menos sensíveis socialmente. E as leis podem acompanhar essa nossa transcendência - há exemplos em que a biologia é descartada em nome da lei, como na deserdação, em que o sujeito para todos os efeitos não é mais filho de seu pai.

E é bem óbvio, mas só para quem já se deu ao trabalho de conversar como gente, que essas pessoas não "escolhem" ser trans. Simplesmente são. Como não se escolhe gostar de homem, mulher, ambos ou nenhum. Por isso é tão estúpido querer proibir as pessoas de usar seus nomes sociais: isso não vai mudá-las, transformá-las "de volta ao normal". Como permitir o uso não vai dar ideia para ninguém virar travesti.

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Dá para ver que a motivação por trás dessa proibição não é a religião, mas a idiotice. Mesmo compreendendo a tacanha moral de quem não entendeu as palavras de Jesus, como os deputados que usam o nome de Cristo para tratar de forma indigna pessoas ao tentar proibi-las de ser como são, o projeto legislativo não tem sentido. Não compreende a complexidade da experiência humana, não capta a profundidade da mensagem cristã, não impede ninguém de ser transexual ou travesti nem previne ninguém de se tornar um. Só o que faz é acrescentar constrangimento à vida já tão cheia de preconceitos dessa população.

Em suma, uma estupidez.

Opinião por Daniel Martins de Barros

Professor colaborador do Dep. de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP. Autor do livro 'Rir é Preciso'

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