PUBLICIDADE

EXCLUSIVO PARA ASSINANTES
Foto do(a) coluna

Psiquiatria e sociedade

Opinião|O medo, antes da morte e depois do amor

O medo é uma força muito explorada em nossa sociedade. O problema é que quanto mais temos medo, menos arriscamos na vida. O que pode acabar levando a um verdadeiro esvaziamento da existência.

Foto do author Daniel Martins de Barros
Atualização:

O medo é uma indústria muito poderosa. O medo da violência movimenta o mercado da segurança; o temor das doenças alimenta uma indústria bastante diversificada em produtos, que vão de limpeza a alimentação; isso para não falar em compras por medo de ficar de fora, de perder a oportunidade, de ser socialmente excluído. O marketing e a publicidade descobriram muito antes das neurociências que as emoções têm um papel enorme em nossas tomadas de decisão. E com o tempo foram aprendendo a refinar o alvo, manipulando em emoções cada vez mais básicas - e portanto intensas e difíceis de controlar - para estimular o consumo.

PUBLICIDADE

Há quem acredite que apesar de vivermos em tempos cada vez menos ameaçadores as pessoas estão cada vez mais temerosas. Quanto mais seguros estamos, mais as coisas podem parecer perigosas. "Tudo é ousado para quem a nada se atreve", como alertara Fernando Pessoa. E dá-lhe produtos para garantir a proteção.

Não conheço dados estatísticos que confirmem ou neguem essa hipótese, mas me parece bem plausível. E coerente com o que observo ao meu redor. Gente com mais e mais medo, de mais e mais coisas, muitas vezes sem justificativa a não ser um viés de memória. Penso se essa insegurança toda não estaria contagiando outras áreas da vida. O medo de crescer, por exemplo, é um fenômeno tão disseminado que já deu origem a uma geração inteira batizada de kidults, ou "criançadultos": sujeitos que se recusam a deixar a infância para trás (o que, aliás, é um excelente negócio para fabricantes de produtos infantis para gente grande; não à toa publicitários americanos criaram o termo Peterpandemônio para se referir à essa epidemia conveniente para eles). Seria um efeito colateral de uma sociedade que tudo teme?

Fora o cada vez mais aparente medo do amor. O número de solteiros cresce no mundo todo, inclusive no Brasil, à medida que as pessoas optam por não se envolverem formalmente. Nada contra a pessoa não querer casar - se vínhamos casando contra a vontade, impelidos por uma conformação social excessiva, viva a liberdade de fazer o que queremos. Mas não seria outro sintoma do excesso de medo? Já há quem fale em filofobia, ou o pavor de se envolver emocionalmente. Todo mundo conhece alguém nessa situação: aquele amigo ou amiga que diz acreditar no amor, mas foge diante da menor possibilidade de um envolvimento mais sério. Mesmo que tenha encontrado alguém compatível e bacana, aparentemente sem razão não deixa o relacionamento ir para a frente. Medo?

Talvez haja outras explicações sociológicas ou até econômicas, mas acho que a insegurança conta muito. No livro que citei em texto anterior, sobre a mortalidade, o autor afirma que as pessoas não têm medo da morte, mas do que vem logo antes dela: o risco de sentir dor, a possibilidade de sofrimento, a sensação de perda de controle. Ora, não é o mesmo o que acontece no amor? Mas nesse caso, esses riscos surgem logo depois dele. E estamos todos muito avessos a riscos.

Publicidade

O risco é acabarmos tendo medo de tudo, nos fechando para qualquer tipo de experiência existencial. Chegaríamos à segurança absoluta para uma vida absolutamente sem sentido. O que aconteceria com uma sociedade cuja existência fosse tão vazia de significado? Tenho medo de pensar na resposta.

Opinião por Daniel Martins de Barros

Professor colaborador do Dep. de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP. Autor do livro 'Rir é Preciso'

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.