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Psiquiatria e sociedade

Opinião|O cérebro imoral - Mentes corrompidas, parte 3

As decisões morais, como todo tipo de decisão, passam por nosso cérebro. Se não sabemos ao certo todos os elementos que levam alguém se corromper, conhecemos pelo menos algumas áreas cerebrais que falham na tentativa de impedir tais decisões.

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Atualização:

Nos dois primeiros episódios da série Mentes corrompidas, vimos que as mentes corruptas podem ser influenciadas pelo poder - o sujeito passa a se achar menos condenável que os outros por ser poderoso (hipocrisia moral) - e também pelas atitudes - depois de se corromper as pessoas se convencem que não era errado, para fugir da dissonância ética. Mas o que será que acontece no cérebro corrompido?

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A corrupção é uma atitude que resulta de um cálculo no qual pesam dois principais fatores: a importância que se dá às normas sociais e o risco de ser pego. Outras variáveis podem influir na decisão, como a quantidade roubada, quem será prejudicado, por quanto tempo durará o crime, o meio de perpetrá-lo etc., mas de uma maneira ou outra estão todos atrelados aos dois primeiros. Quanto mais se consideram os valores da sociedade, menor a chance de violá-los. Como menor também é a chance de fazer algo errado na proporção que cresce a chance de ser flagrado. Essa tomada de decisão moral, como todas as outras no fim das contas, depende de um cérebro bem afinado. Sobretudo no componente emocional.

Um dos modelos usados para compreender a relação entre cérebro e comportamento moral é o da psicopatia. Embora não exista uma causa para ela, nem um exame cerebral que a diagnostique, sabe-se que, de forma geral, o cérebro dos psicopatas funciona de forma diferente do das outras pessoas. Sua frieza, baixa reação emocional, ausência de medo devem-se - ao menos em parte - a um menor funcionamento das estruturas cerebrais chamadas amígdalas (nada a ver com as da garganta). Elas captam sinais de perigo, de ameaças, e disparam reações físicas automáticas, como aceleração do coração e sudorese, reações que os psicopatas não apresentam (daí serem literalmente frios). Mas tais reações não se devem apenas ao que vemos e ouvimos, mas também à forma como interpretamos as situações com base em memórias, conhecimento e raciocínio - o que ocorre numa outra região com o longo nome de córtex pré-frontal ventromedial (VMPFC, na sigla em inglês). É nessa região em que ocorre a deliberação, onde os aspectos emocionais e racionais são calculados e a decisão é tomada. Pacientes que sofrem lesões neurológicas nessa área mudam seu comportamento e tornam-se mais indiferentes aos outros, egoístas, decidindo de forma mais imediatista e irresponsável - não por acaso, tal condição é por vezes chamada de "psicopatia adquirida".

Se muitas vezes deixamos de fazer o que queríamos é por conta desses freios emocionais que faltam aos psicopatas. Não falo só de sermos capazes de resistir àquela vontade de avançar no pescoço de alguém. É também não trapacear no trabalho para conseguir uma promoção; não prejudicar um amigo por dinheiro; não pegar da geladeira o último pedaço de doce que não é nosso. Imaginamos que as pessoas afetadas irão sofrer, o que nos faz pensar duas vezes. E o medo de ser pego também nos segura. Esses dois breques comportamentais faltam absolutamente nos psicopatas e parcialmente nos corruptos. Como a corrupção é sempre lesiva para alguém, para se corromper a pessoa tem que superar os sentimentos negativos que seu ato gera, além de passar por cima do medo.

Claro que nem todo corrupto tem o diagnóstico de psicopatia (a maioria não deve ter). Mas fica evidente que corromper-se é, em alguma medida, pensar como um psicopata. É buscar o máximo de ganho com o mínimo de esforço, pagando por isso apenas o preço de lesar os outros. E é o tamanho desse "apenas" que diferencia o cidadão que opta por não roubar, o corrupto que supera sua culpa, e o psicopata incapaz de empatia.

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E nós, com que tipo de cérebro queremos pensar nosso país?

Opinião por Daniel Martins de Barros

Professor colaborador do Dep. de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP. Autor do livro 'Rir é Preciso'

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