PUBLICIDADE

EXCLUSIVO PARA ASSINANTES
Foto do(a) coluna

Psiquiatria e sociedade

Opinião|Manhunt : Unabomber nos lembra que maldade não é doença

O velho dilema loucura ou maldade é o protagonista de uma série criminal.

Foto do author Daniel Martins de Barros
Atualização:
 Foto: Estadão

Eu não estava programando voltar a escrever sobre seriados, mas é difícil resistir. Tanto me recomendaram o Manhunt: Unabomber, produção do Discovery Channel em oito capítulos, disponível na Netflix, que resolvi conferir. E cá estou, recomendando também.

PUBLICIDADE

O drama é uma versão ficcional da história da prisão de Ted Kaczynski, conhecido mundialmente como Unabomber. Entre os anos de 1978 e 1995 Kaczynski aterrorizou os EUA, enviando cartas-bomba a diferentes pessoas, matando três e ferindo outras 23. A maior parte do seriado trata da caçada - as centenas de perfis imprecisos que foram produzidos pelos especialistas do FBI (já falamos sobre os alcances e limites dessa prática aqui); a inescapável politicagem por trás das buscas; obsessão quase insana do protagonista em capturar o terrorista.

Mas no final das contas, quando ele já está preso - e em se tratando de uma história real com uma das maiores coberturas de imprensa de todos os tempos não sei o que se pode considerar spoiler (de qualquer forma fica a dica - vou falar sobre a trama) - o FBI quer evitar o julgamento a todo custo. Eles acreditavam que Kaczynski aproveitaria para espalhar suas ideias, transformando o tribunal num palanque. Por isso gostariam que ele se declarasse culpado, mas isso ele se recusa a fazer. Os seus advogados resolvem, para salvar sua vida, declarar insanidade. Evitariam a pena de morte em troca da internação psiquiátrica. Para ele, contudo, isso é pior do que a morte. As bombas eram a maneira de ele levar suas excêntricas ideias adiante, pregando sua mensagem contra a sociedade tecnológica. Uma vez declarado insano todo seu discurso seria esvaziado como palavras de um louco, algo para ele inadmissível. Para evitar esse fim, declara-se culpado, numa última vitória do FBI. Está até hoje preso, condenando a oito prisões perpétuas consecutivas, sem direito a apelo.

Essa é uma boa discussão. Particularmente acredito que ele tenha sim um transtorno mental. Ao menos da forma como é retratado ele lembra muito alguns casos de transtorno de personalidade chamada esquizoide. Não é o mesmo que esquizofrenia, pois essas pessoas não perdem o contato com a realidade. E claro que ninguém se torna terrorista só por ter tal diagnóstico. Mas o padrão de personalidade com isolamento extremo, ausência de relações significativas, indiferença afetiva, excesso de fantasia e introspecção, levando a prejuízos na vida, são sinais sugestivos.

O paradoxal é que se for esse diagnóstico ele poderia continuar a ser considerado responsável por seus atos e ao mesmo tempo ter seu discurso esvaziado. As ideias não seriam mais fruto da genialidade e sim do distúrbio. Mas nos transtornos de personalidade habitualmente a capacidade de diferenciar certo e errado e agir de acordo estão preservadas. Ou seja, ele pode até ter mandado bombas para defender ideias insanas, mas sabia muito bem que estava matando inocentes de forma criminosa.

Publicidade

Trata-se de uma lição na qual deveríamos prestar mais atenção em nossos tempos tão polarizados. Nós podemos achar o que quisermos, ser contra, a favor ou radicalmente muito pelo contrário. Mas quando uma ideia está nos levando a ferir os outros, vale a pena questionar quão sã ela é.

***

Leitura mental

 Foto: Estadão

Falando em ideias e convicções, é impressionante notar como nós passamos a vida de certeza em certeza sem nos darmos conta de como é fácil nos enganarmos. Não se trata apenas de falhas de percepção, como já fica explícito na famosa ilusão de ótica "café wall", impressa na capa do livro Sobre ter certeza : Como a neurociência explica a convicção, do neurologista e escritor Robert Burton, lançado no Brasil pela editora Blucher. Além dessas falhas de imput, nosso cérebro é ótimo em nos transmitir o que Burton chama de "sensação de certeza", levando-nos a acreditar piamente em coisas que podem não ter qualquer base no conhecimento. Na maioria das vezes a convicção é apenas isso - uma sensação construída sem o menor auxílio de nossa razão. Deveria ser leitura obrigatória, disso eu tenho certeza.

Opinião por Daniel Martins de Barros

Professor colaborador do Dep. de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP. Autor do livro 'Rir é Preciso'

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.