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Psiquiatria e sociedade

Opinião|Infância nada inocente - os saques no Espírito Santo e o desenvolvimento moral da nação

Os saques no Espírito Santo mostram que o Brasil está naquela fase de infância nada inocente.

Foto do author Daniel Martins de Barros
Atualização:
 Foto: Estadão

foto: Wilton Jr./ESTADÃO

 

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O que vem acontecendo no Espírito Santo desde que a polícia entrou em greve - mesmo que não usem esse termo - mostra como no Brasil o cimento social é ralo, os laços que nos unem são fracos. O episódio demonstra um estágio de imaturidade que chama a atenção.

Nós não nascemos sabendo exatamente o que é certo ou errado. Temos embutido um senso de justiça e injustiça precário, mas dependemos do amadurecimento para adquirir noções morais mais sofisticadas. Um dos teóricos fundamentais do desenvolvimento humano, Piaget, dividia esse amadurecimento em três fases: heteronomia na infância - quando as regras vêm de fora (hetero -outro; nomos - normas); autonomia na vida adulta, quando essas normas são compreendidas e assumidas autonomamente pelos indivíduos; e uma fase de transição entre elas, ocorrendo na adolescência.

Seu discípulo Lawrence Kohlberg, um dos psicólogos mais influentes do século XX, expandiu essas proposta, definindo três grandes etapas no amadurecimento moral. A primeira chamou de fase pré-convencional - nela, a criança não entende que existem convenções sociais, e acha que certo e errado são determinados por prêmio ou punição; se levo bronca, é errado, se sou elogiado, é certo. Na fase convencional, ocorrendo na adolescência, compreendemos que existem leis, normas, convenções sociais, e passamos a nos pautar por elas; se a lei permite, é certo; se a lei proíbe, é errado. Por fim, na fase adulta, algumas pessoas (mas não todas) passam para a fase pós-convencional - existe uma ética essencial, que determina o que é certo, e que nem sempre está corretamente traduzida nas leis. Às vezes as leis estão erradas.

No Espírito Santo vemos que a sociedade brasileira não chegou sequer ao nível de amadurecimento de um adolescente. Na ausência de punição - com a polícia fora das ruas - comportamentos como furtos passam a ser aceitos. Aparentemente ignora-se a convenção sobre não roubar, que independente de punições existe porque alguém é prejudicado por tal atitude. Ela fere um bem coletivo. E nem chegamos perto de entender que, para além desse acordo social, roubar é errado por si só.

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Como se não fosse ruim suficiente,mais preocupante do que a imaturidade é o caos social que esse comportamento de massa denuncia. A polícia não está vigiando mas os vizinhos estão todos lá observando. E quando o olhar do outro já não é suficiente para coibir o comportamento imoral em plena luz do dia, estamos num ponto em que mesmo as normas informais já não significam nada. Dá impressão de que chegamos na condição de anomia (a- ausência, nomos-regras), quando a sociedade já não sabe mais sobre quais bases se apoiar para diferenciar o certo do errado. É o ponto em que só a força bruta é respeitada.

Parece que há um caminho muito, muito longo para percorrermos como grupo social até chegarmos perto de ser uma nação.

 

 

Opinião por Daniel Martins de Barros

Professor colaborador do Dep. de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP. Autor do livro 'Rir é Preciso'

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