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Psiquiatria e sociedade

Opinião|Imigração, jaula e colo - os impactos emocionais da política imigratória de Trump

Separar filhos e pais à força é desumano. O trauma é inimaginável.

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Atualização:

 

Você já perdeu seu filho de vista numa multidão, mesmo que por alguns segundos? Ou lembra-se de ter se perdido de seus pais, quando criança? Eu já estive dos dois lados. Tenho registro de uma cena, embaralhada na gaveta de memórias antigas, na qual eu saio de uma escada rolante de um shopping e, distraído com a multiplicidade de estímulos, viro para o lado e começo a caminhar. De repente olho em volta e não vejo minha família. Eu devo ter virado para o lado errado. Um frio na barriga começa a surgir mas imediatamente meu pai surge em meu campo de visão, de supetão. E foi também num shopping em que perdi meu filho mais velho quando tinha uns três anos - ele saiu correndo na frente e virou num corredor, mas desapareceu da minha vista quando virei atrás. O desespero é indescritível - lembro-me de olhar em volta alucinadamente, perguntado para minha esposa se ela o tinha visto. O tempo passa em câmera lenta, e um misto de incredulidade e pavor cresce lentamente. Até que vi um homem com ele procurando pelo pai - meu filho entrara atrás dele no banheiro, tomando-o por mim.

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Mesmo com essas experiências não posso sequer imaginar o impacto da política de tolerância zero à imigração ilegal implementada pelo governo Trump. Se por acaso você não viu, seu secretário de Justiça, Jeff Sessions, determinou que todo imigrante ilegal fosse preso imediatamente. Com isso pais e filhos são separados à força, levados para lugares distantes, incomunicáveis. Os relatos dos observadores e as imagens chocaram o mundo - crianças sozinhas, chorando, sendo cuidadas por outras crianças maiores, enjauladas, diante de guardas que não podiam sequer consolá-las.

Ver as fotos das crianças enjauladas sem os pais me fez pensar na famigerada experiência de Harry Harlow, que nos anos 1970 separava macacos recém-nascidos de suas mães e as deixava com bonecas  feitas de arame com mamadeiras repletas de leite ou então bonecas feitas de pelúcia macia, mas sem comida.  Harlow descobriu que apesar de buscarem o alimento na boneca dura e fria os filhotes passavam muito mais tempo no colo da confortável, necessitados de aconchego. E se só tinham uma opção em suas jaulas, os macaquinhos famintos por não terem acesso a leite eram ainda assim menos estressados do que aqueles alimentados mas sem colo.

Só podemos estimar as consequências desastrosas dessa situação nos EUA. Embora a repercussão negativa tenha feito Trump voltar atrás na separação entre pais e filhos, a tolerância zero persiste e ainda não se sabe como as famílias serão reunidas na prática. Cerca de duas mil crianças ainda seguem separadas dos pais, dentre elas 49 brasileiras. A imigração por si só já é um fator de risco para vários transtornos mentais, dependendo das condições pré-migratórias, de trânsito e de realocação, indo de estresse pós-traumático a psicoses, passando pode depressão e abuso de substâncias. Somadas à mais essa experiência - extremamente traumática - ninguém sabe exatamente o que poderá acontecer com os pais e as crianças, mesmo depois de reunidos novamente.

A questão da imigração é um problema real, que não admite soluções fáceis ou simples. E é importante refletirmos sobre o que achamos disso, pois se o caso de Trump e os latinos parece distante de nós, é bom lembrar que os venezuelanos estão acorrendo em massa para o Brasil, exatamente num ano em que temos eleição.

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Leitura mental

 Foto: Estadão

Milhares de brasileiros já enfrentaram a separação compulsória de seus filhos ao serem levados à força para longe do convívio social. Não por conta da imigração, mas por causa da lepra, como era então chamada a hanseníase, doença dermatológica que, embora curável, é das mais estigmatizadas de todos os tempos. Sempre atrasado, o Brasil demorou demais a oferecer o tratamento médico para os pacientes, que amargaram internações em leprosários - espantosamente presentes em nosso país até 1986. No livro A praga (Geração, 2017), a jornalista Manuela Castro conta essa história, reunindo farta documentação e entrevistas com vítimas dessa desumana política de saúde. É daqueles livros que nos levam a refletir não só sobre os absurdos do passado, mas também a pensar no que dirão de nós no futuro.

 

Opinião por Daniel Martins de Barros

Professor colaborador do Dep. de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP. Autor do livro 'Rir é Preciso'

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