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Psiquiatria e sociedade

Opinião|Greve com começo, sem centro e sem fim

A greve parece não ter fim. É porque não tem centro.

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Atualização:

 Foto: Estadão

Como todos os brasileiros me sinto perdido nessa greve. E por todos quero dizer desde governos até os órgãos representativos dos caminhoneiros, sejam seu sindicato ou suas associações. As notícias dão conta de que as negociações avançam, mas os bloqueis não cedem. Os acordos são fechados sem que as estradas sejam abertas. Ninguém consegue compreender exatamente o que está acontecendo.

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Até que finalmente entendi: não dá mesmo para entender. Assim como outros eventos sociais recentes no Brasil e no mundo, essa paralisação dos caminhoneiros tem características de um fenômeno emergente, o que dificulta não apenas sua compreensão, mas também seu controle, seja por quem for. São fenômenos complexos que surgem (ou "emergem") a partir da multiplicidade de interações entre agentes simples. Cada agente individual não tem as características do sistema complexo; este aparece com a multiplicidade de interações entre vários envolvidos, passando a apresentar então características inéditas (não presentes nos agentes simples) e em grande parte imprevisíveis.

Traduzindo para o noticiário nacional, cada um dos caminhoneiros é um agente simples, mas altamente conectado com centenas ou milhares de outros por meio das mídias sociais. A rede que se forma permite a emergência de um novo fenômeno, essa greve sem centro, sem líderes únicos. Torna-se impossível colocar fim ao movimento uma vez que, hiper-conectados, os agentes conseguem modificar o comportamento da rede inteira se discordam das negociações oficiais. Como afirmou o presidente da Federação dos Caminhoneiros Autônomos de Cargas em Geral de São Paulo (Fetrabens), Norival de Almeida Silva, "nenhuma entidade hoje pode dizer que tem o poder de liberar rodovia". É isso mesmo, Norival.

E para jogar mais gasolina na fogueira (atualmente os clichês são os únicos lugares onde se pode usar gasolina), a troca contínua entre os grevistas leva também à polarização de grupo. Essa é a tendência que os grupos têm de tomar decisões mais radicais do que a posição original de cada um dos membros. A radicalização acontece quando pessoas, partindo de uma opinião parecida, mantém um diálogo por tempo suficiente para se influenciarem mutuamente, levando a coletividade a adotar atitudes mais extremas do que individualmente os membros apoiariam. Se fosse possível tirar a média das opiniões isoladas de cada caminhoneiro, provavelmente a greve já teria acabado. Mas a polarização de grupo os empurra na outra direção - os líderes são acusados de traidores e há incitação à violência contra quem quer trabalhar.

A solução, nem precisa que eu diga, não se limita à negociação - os nós das redes são muitos, e cada vez mais radicais, inviabilizando uma saída cem por cento negociada. Firmados os contratos com as principais lideranças, a única chance de debelar a greve é derrubando a rede. É o que deve acontecer agora, com as prisões de quem se negar a encerrar a paralisação após os acordos.

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Não quero parecer engenheiro de obra pronta, porque agora é fácil olhar para trás e dizer que o governo já deveria ter feito isso. E também nem sei o quão efetivo isso será. Mas a teoria e a prática nos dizem que há horas em que é preciso dar um basta. Essa hora chegou.

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Leitura mental

 Foto: Estadão

A forma como tomamos nossas decisões é muito diferente do que imaginamos. Adoramos pensar em nós mesmos como seres totalmente racionais, que deliberam prós e contras e então decidem. O problema com essas crenças não é apenas que vivemos um engano - isso também dificulta a tarefa cotidiana que temos de influenciar o comportamento alheio. Sejamos vendedores querendo convencer um comprador, policiais orientando cidadãos, gerentes tentando motivar a equipe, para exercer qualquer atividade humana precisamos influenciar pessoas. No livro A mente influente : o que o cérebro revela sobre nosso poder de mudar os outros, (Rocco, 2018), a neurocientista Tali Sharot abandona o jargão científico - sem deixar de citar os mais curiosos experimentos - para nos mostrar o que realmente faz diferença na hora de decidirmos alguma coisa. Sabendo disso, fica mais fácil influenciar os outros a decidir como precisamos que seja feito.

Opinião por Daniel Martins de Barros

Professor colaborador do Dep. de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP. Autor do livro 'Rir é Preciso'

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