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Psiquiatria e sociedade

Opinião|Fanatismo ou delírio

Ideias delirantes são diferentes de ideias extremistas. Quase sempre.

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Adélio Bispo, agressor de Bolsonaro. Foto: PM-MG

"Se você discutir com um louco, é extremamente provável que leve a pior; pois sob muitos aspectos a mente dele se move muito mais rápido por não se atrapalhar com coisas que costumam acompanhar o bom juízo. Ele não é embaraçado pelo senso de humor ou pela caridade, ou pelas tolas certezas da experiência. Ele é muito mais lógico por perder certos afetos da sanidade. De fato, a explicação comum para a insanidade nesse respeito é enganadora. O louco não é um homem que perdeu a razão. O louco é um homem que perdeu tudo exceto a razão. A explicação oferecida por um louco é sempre exaustiva e muitas vezes, num sentido puramente racional, é satisfatória. Ou, para falar com mais rigor, a explicação insana, se não for conclusiva, é pelo menos incontestável. É o que se pode observar especialmente nos dois ou três tipos mais comuns de loucura. Se um homem disser, por exemplo, que os homens estão conspirando contra ele, você não pode discutir esse ponto, a não ser dizendo que todos os homens negam que são conspiradores; o que é exatamente o que os conspiradores fariam. A explicação dele dá conta dos fatos tanto quanto a sua". (G. K. Chesterton)

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Esse trecho do livro Ortodoxia, do intelectual inglês Chesterton, é excelente para esclarecer o assunto em torno da tentativa de homicídio do Bolsonaro.

Tirando os extremos dos dois lados, defensores com a mesma certeza teorias conspiratórias opostas -  que crime ter sido uma encenação conservadora ou uma trama comunista - a discussão séria é se Adélio Bispo de Oliveira é ou não responsável por seus atos. Seria a agressão fruto de loucura ou de fanatismo político? A defesa diz que o discurso de ódio de Bolsonaro motivou o crime de alguém perturbado. O Ministério Público diz que seu discurso é lógico e coerente. Mas por mais estranho que pareça, a lógica não é incompatível com o delírio.

Em psiquiatria chamamos de psicóticos os quadros nos quais existe a perda de contato com a realidade, levando a uma dificuldade dos pacientes de distinguir o que é verdade do que não é. Os sintomas básicos são as alucinações e os delírios. Alucinar é ter uma percepção sem que exista um estímulo correspondente na realidade - como ouvir uma voz sem que ninguém esteja falando nada. Delírios são crenças inabaláveis, sem base na realidade, que não cedem à argumentação mesmo diante de evidências contrárias. E que não fazem parte de um conjunto de crenças culturalmente aceitos.

Apenas nos quadros mais graves - que erroneamente as pessoas acreditam ser mais comuns - é que o discurso do paciente se torna incompreensível ou incoerente. No mais das vezes eles podem apresentar as mais diversas ideias delirantes sem perder a lógica de seu discurso. Aliás, a sustentação de suas insanas crenças costuma ser apaixonada dada a certeza que têm. É disso que Chesterton fala quando diz que o louco perdeu tudo, exceto a razão. O paranoico que acredita ser vítima de uma conspiração secreta vê na incredulidade alheia e na ausência de provas os sinais mais claros de que o sigilo da trama está sendo bem-sucedido. E como contra argumentar com tal lógica?

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Quando além de fixas as ideias são bizarras, sem qualquer embasamento, é mais fácil diagnosticá-las como delirantes. Mas os delírios não escolhem conteúdo. Enquanto uns acreditam que são imperadores do mundo ou que os extraterrestres colocaram um chip em seus cérebros, outros terão delírios mais plausíveis, como estar sendo traídos ou monitorados pela  Google. E nos casos em que os eles se aproximam de crenças religiosas ou convicções políticas pode ser bem mais complicado diferenciar se os sintomas são de fanatismo ou de transtorno mental. Quanto mais intensas, mais extremas, mais difíceis de controlar e mais prejudiciais para a pessoa, mais as ideias fanáticas se aproximam dos delírios.

Esse bem pode ser o caso de Adélio Bispo de Oliveira. Não sei se ele sofre ou não de um transtorno mental. Mas quando juntamos o fato de já ter feitos vários tratamentos psiquiátricos e usados diversos medicamentos psicotrópicos com o conteúdo persecutório de suas postagens nas redes sociais (como as em que acusa a maçonaria de persegui-lo) não é difícil enxergar suas atitudes como sintomas psicóticos. No dia do crime ele afirmou que estava cumprindo uma ordem de Deus, o que, em sendo verdade, dá uma dimensão da perda de controle sobre suas ideias a ações.

O teor do discurso de Bolsonaro foi causa necessária e suficiente para o levar a cometer o crime? Arriscando desagradar os torcedores dos dois extremos, duvido que tenha sido suficiente; mas também duvido que não tenha sido necessária.

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Leitura mental

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 Foto: Estadão

Dada a íntima ligação entre o tema e esse livro, peço a devida licença aos leitores para comentar sobre meu lançamento mais recente, Introdução à Psiquiatria Forense, que sai esse mês pela Artmed. No meio do caminho entre uma obra técnica e para o público geral, nele eu explico o que faz afinal um psiquiatra forense. Alerta de de spoiler, não tem nada a ver com seriados de caça a serial killers ou investigações detetivescas. Mas sempre que a justiça tem dúvida sobre a sanidade mental de alguém, seja na esfera criminal, cível, trabalhista, previdenciária ou o que for, o médico que se dispuser a auxiliar no esclarecimento dessas questões estará atuando como um psiquiatria forense. É menos glamouroso - mas talvez mais importante - do que as pessoas imaginam.

Opinião por Daniel Martins de Barros

Professor colaborador do Dep. de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP. Autor do livro 'Rir é Preciso'

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