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Psiquiatria e sociedade

Opinião|Falar, medicar, rezar

Religião, espiritualidade e psiquiatria têm uma estreita relação. Nem sempre ruim, nem sempre boa.

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 Foto: Estadão

"Há dois erros semelhantes mas opostos que os sereshumanos podem cometer quanto aos demônios. Umé não acreditar em sua existência. O outro é acreditarque eles existem e sentir um interesse excessivo e poucosaudável por eles."

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C. S. Lewis, Cartas de um Diabo a seu Aprendiz.

 

A relação entre a espiritualidade e transtornos mentais, religiosidade e psiquiatria, frequentemente cai num de dois extremos. Profissionais da saúde muitas vezes ignoram essa dimensão da vida do paciente, atribuindo a doença a causas psicológicas, bioquímicas, genéticas, familiares (refletindo mais a especialidade de quem está tratando do que as necessidades de quem está sendo tratado). De outro lado é bem comum que pacientes supervalorizem o papel da religião, postergando o tratamento clínico enquanto esperam o resultado de alguma intervenção espiritual. Como sempre, esses dualismos atrapalham mais do que ajudam.

De fato a maioria da população, na maioria dos países, considera a religião importante, seja na orientação moral, seja na direção de práticas e rituais. Um número ainda maior de pessoas, mesmo não religiosas, valoriza a dimensão espiritual da vida, o que inclui a percepção de que existe uma realidade transcendente, sagrada, que as pessoas são mais do que indivíduos, e que há uma interconexão que sustenta os valores humanos. Tais aspectos são de fundamental relevância no tocante ao adoecimento mental. Pois se é a fé é positiva de muitas formas, colaborando na evolução de problemas como depressão e ansiedade, reduzindo a taxa de suicídios e de dependências químicas, ela pode também ser prejudicial quando se coloca como um obstáculo ao tratamento multidisciplinar. Daí a importância de se conversar sobre o tema com os pacientes, para compreender como eles veem a inter-relação entre a doença e a espiritualidade, sem o quê pode-se perder a oportunidade de ajudá-los.

Felizmente a importância do tema não tem escapado da atenção de entidades médicas. A Associação Mundial de Psiquiatria (WPA), por exemplo, tem uma seção dedicada exclusivamente ao tema, presidida pelo psiquiatra professor da Universidade Federal de Juiz de Fora, Alexander Moreira-Almeida. Em sua declaração de posição a WPA traz recomendações oficiais aos profissionais de saúde mental. Resumidamente, orienta que esses aspectos sejam rotineiramente incluídos nas avaliações clínicas; que suas implicações para o diagnóstico e tratamento sejam consideradas; que ainda assim o centro da atenção seja o paciente, não sua crença (seja para reforçá-la ou combatê-la); e que se tomem em conta tanto os potenciais auxílios como empecilhos apresentados pela religiosidade. Além disso propõe que novas pesquisas sejam feitas, que os profissionais interajam profissionalmente com ministros religiosos independente de credo e que estejam cientes de que a espiritualidade é a força motriz para muitos dos voluntários e cuidadores em saúde mental.

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Apesar de todas as dificuldades, eu vejo com otimismo essa possibilidade de interação, sobretudo com o decrescente preconceito com as doenças mentais. Sim, porque os maiores obstáculos têm menos a ver com a religião, seja ela qual for, e mais a ver com o estigma que cerca a psiquiatria. Ninguém, por mais religioso que seja, ao acreditar que está tendo um infarto clama por oração: "Socorro, acho que estou enfartando. Rápido, me levem para uma igreja". Como todos reconhecem a realidade da doença cardíaca ninguém coloca a dimensão material em segundo plano - mesmo quem acredita na força da fé sente-se mais seguro orando dentro de uma boa UTI.

Então quanto mais conseguirmos explicar para as pessoas que os transtornos mentais são doenças reais, quanto menos as pessoas tiverem preconceito, mais fácil será a interação entre a religiosidade, espiritualidade e a psiquiatria.

Só quando não se acreditar mais que depressão para os fracos é que não haverá mais conflito entre orar e tomar remédio.

 

Alexander Moreira?Almeida, Avdesh Sharma, Bernard Janse van Rensburg, Peter J. Verhagen, Christopher C.H. Cook . WPA Position Statement on Spirituality and Religion in Psychiatry World Psychiatry. 2016 Feb; 15(1): 87-88. PMCID: PMC4780301

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Leitura mental

 Foto: Estadão

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O filólogo, escritor e professor de Oxford, C. S. Lewis ficou mais conhecido no Brasil por suas Crônicas de Nárnia. No entanto, sendo um ateu convertido (sem qualquer entusiasmo, como ele conta em sua biografia), ele introduziu um tipo de rigor acadêmico em seus escritos sobre a religião que, aliado a seu humor britânico, sua erudição e imaginação, fazem dele um dos pensadores mais interessantes da religião em geral, e do cristianismo em particular. Sua obra, que inclui fantasia, ficção científica, poesia, sermões, ensaios e até um impressionante diário de seu luto, vem sendo relançada no Brasil pela editora Thomas Nelson, do grupo HarperCollins. Até agora saíram O Peso da Glória, A Abolição do Homem, Os Quatro Amores, Cristianismo Puro e Simples (adaptado de uma série de rádio para a BBC) e o irônico Cartas de um Diabo a seu Aprendiz. Que venham mais.

 

Opinião por Daniel Martins de Barros

Professor colaborador do Dep. de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP. Autor do livro 'Rir é Preciso'

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