PUBLICIDADE

EXCLUSIVO PARA ASSINANTES
Foto do(a) coluna

Psiquiatria e sociedade

Opinião|Desejos e ações racionais e irracionais

Quem convive com pacientes psicóticos sabe bem disso: mesmo nos delírios pode haver laivos de razão. O fato de Santos não compreender imediatamente a impossibilidade do que estava pedindo não significa que ele não pudesse se dar conta disso com o tempo, como parece ter acontecido. E se sua estratégia era irracional, quem pode dizer o mesmo de seus desejos?

Foto do author Daniel Martins de Barros
Atualização:

Uma das distinções mais óbvias e menos comentadas é a que separa a ameaça da promessa. Embora ambas queiram influenciar o comportamento de alguém, na ameaça estipula-se qual o comportamento desejado pelo outro e se avisa que, se este não for realizado, haverá alguma consequência ruim. A promessa busca o mesmo fim, mas por meios opostos: se o comportamento ocorrer, aí então uma consequência boa - que não existiria de outra forma - por acontecer. As estratégias são opostas: quem faz uma ameaça bem sucedida não precisa tomar qualquer atitude, ao passo que quem faz uma promessa bem sucedida tem que cumprir o proposto. Em ambos os casos, no entanto, o arranjo todo só tem sentido se tanto o comportamento esperado como as ameaças ou promessas forem exequíveis. Tem tão pouco efeito um cidadão ameaçar explodir a lua como exigir que o sol não brilhe. Essas situações, estudadas pela Teoria dos Jogos, buscam encontrar as melhores estratégias racionais em situações nas quais o resultado não depende só de uma das partes envolvidas.

PUBLICIDADE

O sequestro que aconteceu ao longo do dia de ontem, em que Jac Souza Santos, ex-vereador da cidade de Combinado, em Tocantins, manteve cativo um funcionário do Hotel Saint Peter, em Brasília, por cerca de sete horas, foi especialmente complicado por conta de um pequeno detalhe: não havia estratégias racionais envolvidas. Desde o início a ação de Santos deu sinal de não ser exatamente compreensível: pela manhã, pouco tempo depois de dar entrada no hotel, ele bateu nos quartos do andar em que estava hospedado anunciando uma ação terrorista. A partir daí, já com o funcionário feito refém, passou a fazer exigências como a extradição de Cesare Battisti, a renúncia da presidente Dilma e a efetiva aplicação da lei da Ficha Limpa. Pode-se ou não concordar com a pauta apresentada, mas para alguém razoável - ou no uso pleno de sua razão - evidentemente elas não eram dessa forma exequíveis. Mas na outra ponta, a ameaça por ele realizada não apenas aparentava ser possível, já que ele estava armado e amarrara um colete de explosivos ao refém, como iminente.

Ao longo do dia mais elementos foram surgindo levando suspeita sobre a sanidade de Santos: havia cartas de despedida, algumas com frases pouco coerentes, e segundo algumas informações a mãe teria relatado "surtos" anteriores. Essa é a grande dificuldade nesse tipo de negociação: não poder contar - ou não saber ao menos até que ponto - com uma estratégia racional por parte do sequestrador. Em casos de sequestros políticos, de crimes por dinheiro ou mesmo por arroubos de paixão, pode-se negociar, barganhar e, dependo do caso, até mesmo ceder às exigências. Quando estas estão além do possível, contudo, isso deve ser mostrado, se possível apresentando cenários alternativos. Diante de alguém sem o pleno uso de sua razão, a tarefa que já não é fácil multiplica-se em complexidade.

Mas se o caso de hoje se encerrou sem mortes inúteis, não é só porque a arma e os explosivos eram falsos, no final das contas. É também porque - e quem convivem com pacientes psicóticos sabe bem disso - mesmo nos delírios pode haver laivos de razão. O fato de Santos não compreender imediatamente a impossibilidade do que estava pedindo não significa que ele não pudesse se dar conta disso com o tempo, como parece ter acontecido. E, ainda mais interessante, o fato de ele aparentemente estar em surto e usar estratégias irracionais não significa que seus desejos não pudessem ser razoáveis.

Opinião por Daniel Martins de Barros

Professor colaborador do Dep. de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP. Autor do livro 'Rir é Preciso'

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.