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Psiquiatria e sociedade

Opinião|De como o Canal do Panamá formou gente antipática

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[tweetmeme] Cidade do Panamá - Uma coisa que saltou-me aos olhos no Panamá é que as pessoas costumam ser prestativas e, ao mesmo tempo, nada simpáticas. É estranho: elas muitas vezes ajudam, auxiliam, seja o que for, mas sem a menor mostra de boa vontade. Estamos acostumados , no Brasil, a algo um pouco diferente: normalmente quem se dispõe a ajudar o faz com boa vontade, que transparece em certa dose de simpatia.

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Acho que tem a ver com a história recente do país e seu grande marco: a construção do Canal do Panamá. Imagine que uma rede de lojas internacional descubra que há algo no seu quintal que pode alavancar o negócio deles. O que fazem eles? Te sugerem algo que soa bem: alugam os fundos da sua casa e constroem um negócio milionário. Em pouco tempo eles trazem TV a cabo, banda larga de internet, mobiliário moderno, e tudo compartilham com sua família. Esta, aliás, passa a trabalhar para eles: seus filhos, cônjuge, até você sai do antigo emprego e vai trabalhar para os empreendedores que enriquecem a cada dia mais a custa do seu quintal. Isso dura quase um século, ou seja, os seus netos só sabem o que é trabalhar para estes empregadores que desfrutam de uma imagem, no mínimo, dúbia. Quando finalmente eles passam o controle do negócio para seus herdeiros, estes já estão acostumados a servir bem, até por necessidade, mas sem nenhuma simpatia, dadas as circunstâncias.

Em que pese a precariedade da analogia, foi o que ocorreu aqui. Em 1903 os Estados Unidos iniciaram as obras do canal, inaugurado em 1914. Foi deles o direito administrativo até 1999. Tudo o que o comércio mundial gerava por meio dessa impressionante obra de engenharia (algo em torno de US$ 4 milhoes por ano) era deles. Fizeram as estradas, os portos, as ferrovias. Trouxeram desenvolvimento e dinheiro, mas também esta certa hostilidade que contaminou pelo menos três gerações que cresceram neste contexto.

Com certeza esse fator é apenas um dentre outros. E talvez eles nem sejam assim tão antipáticos e isso seja birra de brasileiro, que quer todo mundo sorrindo o tempo todo. Mas fica se há alguma lição é que mesmo verdadeiros bons negócios podem ter efeitos colaterais imprevisíveis.

Opinião por Daniel Martins de Barros

Professor colaborador do Dep. de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP. Autor do livro 'Rir é Preciso'

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