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Psiquiatria e sociedade

Opinião|Cracolândias: violento desfazê-las, violento mantê-las

É uma ação violenta chamar a polícia para acabar com a cracolância. Não fazer nada pode ser ainda mais.

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Olivia Heussler/www.clic.li Foto: Estadão

 

Sempre que alguma autoridade tenta intervir numa região onde usuários de droga de reúnem sistematicamente, invariavelmente a polícia tem que ser acionada. A repressão ocorre e as críticas abundam. Veja o caso das fotos acima, feitas em 1992. É de se perguntar que país é esse, repressor, que não respeitou o direito das pessoas de ficarem naquela praça, expulsando-as à força. Alguma república das bananas? Não. É a Suíça. Que precisou da polícia para fechar a praça Platzspitz, onde as pessoas usavam drogas livremente.

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É absolutamente inevitável: onde há drogas, há violência. Seja no Brasil ou na Suíça, na sua casa ou na rua, na favela ou no palácio. Existem três grandes razões para isso, segundo o interessante modelo tripartite.

A primeira é a violência farmacológica. Dados de diversos tipos de crimes, em diversos países, mostram que frequentemente as pessoas envolvidas estavam sob efeito de drogas, fossem autores ou vítimas. Claro que a agressividade humana não se resume à intoxicação por substâncias, mas a ação dos psicotrópicos altera o funcionamento do sistema nervoso central, o que pode suprimindo a capacidade de controle dos impulsos ou deliberação consciente. Por isso é que usar drogas é um fator de risco conhecido para envolvimento com a violência.

A segunda razão é a violência para obtenção da droga. A maioria dos usuários não recorre à criminalidade para sua aquisição. Há, contudo, um pequeno grupo, sobretudo entre os dependentes mais graves, e de substâncias mais viciantes, que sofre uma desagregação tão grande da vida que fica sem meios de obter a droga se não o crime. As vítimas mais comuns são as pessoas que moram próximas a esses usuários, não raras vezes elas mesmas envolvidas com algum tipo de violência.

A terceira e última é a violência sistêmica. Dado o caráter ilícito de toda a cadeia de produção, distribuição, venda e consumo de algumas drogas, cria-se um universo paralelo, à margem da legalidade, mantendo o mercado das drogas em funcionamento à custa de muita violência, como se vê no modus operandi do tráfico.

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No caso das cracolândias (como no caso da praça Platzspitz) quatro personagens diferentes se reúnem: usuários - que vão até lá para comprar, usando-as como um mercado; dependentes - que perdem o controle sobre o uso da droga, e em casos graves passam a morar lá; moradores de rua - sujeitos que têm inicialmente um problema social, ficando por isso em situação de rua, e que podem ou não usar drogas; traficantes - que lucram a custa dos outros.

Evidente que ações policiais não solucionam o problema dos três primeiros. Usuários e dependentes precisam de assistência à saúde, criminalizá-los não faz sentido. Dependentes e moradores de rua carecem de assistência social - não é preciso força bruta para isso. Mas é também evidente que ela é necessária para desmontar esses guetos controlados pelo tráfico e sustentados pela demanda de quem perdeu o controle sobre o uso da droga. É muita ingenuidade - ou muita má-fé - defender a manutenção desses territórios, cuja existência é por si só uma violação dos direitos humanos. Fingir que é possível recuperar as pessoas ali e deixá-las naquela situação por anos a fio é uma violência infinitamente maior do que qualquer ação policial.

Coisa que os suíços perceberam há um quarto de século.

 

 

 

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Leitura mental

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 Foto: Estadão

Se a questão das drogas tivesse solução simples, já teria sido solucionada. Mesmo que a solução não agradasse a todos provavelmente já teríamos optado por ela para nos livrarmos do problema. No livro Drogas: as histórias que não te contaram (editora Zahar, 2017), a pesquisadora e ativista Ilona Szabó escreve um relato apenas parcialmente ficcional, narrando a vida de alguns dos personagens envolvidos no mercado de drogas. A violência tripartite fica evidente. A autora é uma crítica conhecida da abordagem exclusivamente repressiva, defendendo a busca evidências científicas para embasá-las. Daí sua proposta que países possam fazer experiências nas políticas públicas com relação às drogas. Só assim se avança, afinal.

Opinião por Daniel Martins de Barros

Professor colaborador do Dep. de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP. Autor do livro 'Rir é Preciso'

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