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Psiquiatria e sociedade

Opinião|Como lidar melhor com a raiva

Sentimos raiva quando cremos ter sido injustiçados. Mas às vezes o problema é essa crença.

Foto do author Daniel Martins de Barros
Atualização:

divulgação Disney Pixar Foto: Estadão

Mais de dez milhões de pessoas já assistiram a esse vídeo, que mostra um trecho da palestra no TED do cientista Frans de Waal, no qual ele explica porque um macaquinho ficou indignado com uma cientista. Ele (o macaco) e o colega de jaula realizam a tarefa simples de pegar uma pedra e devolvê-la à pesquisadora. No primeiro momento fica satisfeito ao receber um pedaço suculento de pepino como recompensa. No entanto, ao perceber que o vizinho recebe uvas, reage agressivamente, batendo na parede de acrílico e atirando o pepino - até então bom o suficiente - de volta na iníqua cientista.

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Pensei nessa experiência quando um amigo me confessou sua raiva ao perder um negócio para um concorrente menos qualificado. Ele sabia que corria o risco de ser preterido, mas não conseguia deixar de ruminar a sensação de que "O que dá raiva é a injustiça".

Na mosca. Como acontece com o macaco do vídeo, quando acreditamos que estamos sendo tratados com desigualdade, se algo que consideramos nosso direito nos é negado, imediatamente sentimos uma emoção negativa, que nos impele a buscar a reparação, frequentemente de forma hostil. É a essa emoção negativa, gerada pelo ferimento de uma expectativa, que damos o nome de raiva. Ela está presente de alguma forma não só nos primatas, mas em todos animais sociais. Provavelmente porque sem ela as injustiças prosperariam, desagregando os grupos e inviabilizando a perpetuação da espécie.

Se você tem experimentado muita raiva, portanto, é porque tem se sentido muito injustiçado. Quem sou eu para dizer que não é verdade, mas vale a pena se perguntar: será que é para tanto? Por que nós não temos raiva pelo fato de escurecer à noite quando queríamos aproveitar mais o dia? Ou pelo sol invadir nossa janela quando queríamos esticar um pouco mais o sono? Por que não esbravejamos contra o frio no inverno, nem contra nos o calor no verão? Porque esperamos que essas coisas aconteçam. Não nos parece injusto. Agora pense no sujeito que fica com raiva quando toma uma fechada no trânsito. A manobra em si não tem o poder de deixar alguém mais ou menos nervoso. É a crença de que aquele lugar na rua lhe pertencia e foi-lhe roubado que faz a pessoa ficar com raiva. Quão correta é tal interpretação dos fatos?

A raiva que sentimos quando os outros se atrasam para um compromisso, quando alguém não nos dá a atenção que queríamos, quando perdemos um negócio, está nos dizendo que, em nossa mente, aquilo não era para ser da forma como foi. Mas quem disse que as coisas devem ser como imaginamos? Só num mundo ideal todos dirigem bem, as concorrências são justas, os atendimentos de telemarketing são ágeis e eficazes. Em nossa realidade, uma hora ou outras as coisas darão errado - e viver no autoengano que tudo dará certo é a chave para viver com raiva.

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O filósofo Arthur Schopenhauer disse que o erro fundamental das pessoas é acreditar que nasceram para ser felizes. Uma vez que pensam assim, tudo o que não contribui para sua satisfação é visto como errado. Mas o erro talvez não esteja em como as coisas são, mas em como acreditamos que elas deveriam ser.

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Leitura mental

 Foto: Estadão

Numa cena antológica do seriado Breaking Bad a esposa do professor-tornado-traficante Walter White (aka Heisenberg) mostra para ele a pilha enorme de dinheiro que eles já acumularam e pergunta: "De que altura tem que ser essa pilha, Walt?". É quando começa a ficar claro para nós, e talvez para os próprios personagens, que a questão não é mais o dinheiro. Em Quanto é suficiente? (Civilização Brasileira, 2017), os autores Robert Skidelsy, professor emérito de economia, e seu filho Edward Skidelsky, professor de filosofia, unem suas disciplinas para tentar responder à pergunta-título. Tanto no plano social, com a necessidade de crescimento econômico contínuo, como no plano individual, com a insaciedade das pessoas por bens, temos tratado o dinheiro como um fim em si mesmo, e não como um meio uma vida boa, como definida por Aristóteles. Os autores defendem que é possível definir o que é essa vida boa, para só então perguntar quanto dinheiro é preciso para alcançá-la. E então dar-se por satisfeito.

Opinião por Daniel Martins de Barros

Professor colaborador do Dep. de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP. Autor do livro 'Rir é Preciso'

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