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Psiquiatria e sociedade

Opinião|Carta aberta aos comediantes brasileiros

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Caros comediantes brasileiros,

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Analisar o humor é como dissecar um sapo, poucas pessoas se interessam e no final o sapo morre, disse o escritor E.B.White. Tudo bem, mas sem querer ensinar o padre a rezar a missa, acho que a ciência poderia ajudar vocês a evitarem alguns problemas judiciais sem perder - muito - a graça.

Tenho visto nos últimos tempos algumas polêmicas envolvendo piadas feitas por vocês. Isso acontece - vocês sabem - porque alguns temas são mais sensíveis do que outros, e não adianta reclamar do patrulhamento do politicamente correto, porque os tabus sempre existiram e vão continuar a existir. Por mais que a graça para uns dependa muitas vezes da desgraça de outros (Groucho Marx dizia que um comediante amador acha engraçado vestir um ator de velhinha e jogá-lo escada abaixo, mas um profissional sabe que isso só tem graça se for feito com uma velhinha de verdade) a arte do insulto consiste em dosar essa agressividade inerente ao humor.

Hoje em dia uma teoria que está na moda postula que as coisas são engraçadas quando provocam violações benignas. Primeiro porque desde Aristóteles o cômico está associado à agressão ou alguma outra forma de violação; segundo, e aparentemente contraditório, porque a graça também depende da percepção de certa segurança, garantindo a inocência da brincadeira. Assim, a teoria da violação benigna propõe que essas duas condições devam ser satisfeitas ao mesmo tempo. Para que a agressividade seja percebida como inocente - e portanto engraçada em vez de ofensiva - ao menos uma das seguintes condições deve ser preenchidas: 1) a regra violada deve ser contraditória com outra regra, que fica preservada, gerando uma contradição; 2) a regra violada é fraca, pouco importante para as pessoas; ou 3) a violação é psicologicamente distante do público. Essas características tornam a violação mais "aceitável", garantindo que as pessoas se divirtam mais do que se enraiveçam.

Fica mais fácil de entender o porquê dos recentes protestos contra os senhores, não é mesmo? Fazer piada com estupro só teria graça talvez se a vítima fosse a Cleópatra ou a Mona Lisa, psicologicamente muito distantes das pessoas (afinal, comédia é tragédia mais tempo, como se diz). E pela imensidão do sofrimento causado, o holocausto só poderia eventualmente ser tema de piada para uma civilização alienígena.

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Caros comediantes, despeço-me lembrando que o bobo da corte era o único que podia dizer certas verdades a respeito do rei e do reino, porque o fazia na forma de piada. Assim, desejo que vocês continuem sendo os bobos da corte modernos, mas que não se esqueçam que se ele errasse na mão e ofendesse o rei, acabava no calabouço ou sem cabeça.

Saudações.

Opinião por Daniel Martins de Barros

Professor colaborador do Dep. de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP. Autor do livro 'Rir é Preciso'

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