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Psiquiatria e sociedade

Opinião|Boa noite e boa sorte -- sono, ética e imigração ilegal

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[tweetmeme] Se você quiser ajudar imigrantes ilegais a entrar no Canadá, é melhor ter uma boa noite de sono. Não porque essa seja uma atividade cansativa, mas porque sem dormir bem talvez você não encontre a justificativa moral para sua atitude.

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A Folha de São Paulo de 11 de agosto de 2010 apresentou o depoimento de Joel Deckard, que outrora legislador no Estado de Indiana, após se aposentar passou a ajudar brasileiros a entrar ilegalmente no Canadá para trabalhar. Cobrava pouco, não tinha lucro, e o fazia com a real intenção de ajudar. "Não havia feito nada ilegal antes, mas meu senso moral pessoal indicava que ajudar imigrantes sem questionar seu status legal era mais importante que obedecer a lei.", disse ele.

Segundo o psicólogo Lawrence Kohlberg, isso indica um elevado estágio de maturidade moral: inspirado nas fases de desenvolvimento de Piaget, ele propôs 6 estágios de amadurecimento da moralidade, dividido em 3 blocos: no primeiro (pré-convencional), certo e errado são definidos de forma egoísta - crianças consideram certo o que lhes traz benefícios e errado o que gera castigos; no segundo (convencional), o grupo e a sociedade ditam as normas, e as leis se tornam parâmetro para o que é correto; já no terceiro (pós-convencional) a pessoa entende que as leis nem sempre conseguem traduzir adequadamente os valores essenciais, e o certo pode até ser ilegal. Foi essa a postura de Deckard.

Um estudo com militares noruegueses, entretanto, mostrou que a privação de sono, provavelmente por interferir com a capacidade de raciocínio, faz as pessoas regredirem do estágio pós-convencional para o convencional. Testando um grupo de 92 militares em condições normais de sono ou após cinco dias dormindo apenas duas horas e meia por noite, percebeu-se que quem antes conseguia raciocinar de forma pós-convecional convergia para as leis e regras após o período de privação de sono. Já aqueles que se amparavam desde o início na "lei e ordem" do estágio convencional aí permaneciam. Embora isso seja até certo ponto um efeito protetor - já que, se não consegue raciocinar, o melhor que um soldado tem a fazer é agir estritamente conforme o protocolo, pode ter também consequências negativas, pois situações como tortura de prisioneiros e abuso de autoridade, por exemplo, exigem dos envolvidos uma capacidade de pensar "fora da caixa" para ir no contrafluxo e tentar interromper o movimento da massa.

Ou seja, fazer o que é certo que garante um sono tranquilo. E vice-versa.

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Olav Kjellevold Olsen; Ståle Pallesen; Jarle Eid (2010). The Impact of Partial Sleep Deprivation on Moral Reasoning in Military Officers SLEEP, 33 (8), 1086-1090

Opinião por Daniel Martins de Barros

Professor colaborador do Dep. de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP. Autor do livro 'Rir é Preciso'

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