PUBLICIDADE

EXCLUSIVO PARA ASSINANTES
Foto do(a) coluna

Psiquiatria e sociedade

Opinião|Arte desumana não é arte - sobre a violência de O último tango em Paris

A polêmica cena do estupro em O último tango em Paris não foi só uma cena. Trata-se de violência sexual real. Algo muito distante da arte.

Foto do author Daniel Martins de Barros
Atualização:

Cena de O último tango em Paris. Foto: Estadão

 

É urgente refletir sobre a polêmica cena da manteiga de O último tango em Paris, reacesa nessa semana. O filme, lançado em 1973, mostra com muito realismo (embora não de forma explícita) quando o personagem de Marlon Brando estupra a personagem da atriz Maria Schneider, usandomanteiga como lubrificante para fazer sexo anal.

PUBLICIDADE

Agora, há poucos dias - para marcar o Dia Internacional pela Eliminação da Violência Contra a Mulher (25 de novembro) - um site espanhol publicou uma entrevista do diretor, Bernardo Bertolucci, gravada em 2013, na qual ele admite que a cena não tinha sido totalmente combinada com Schneider. "Sinto que ela me odiou a vida inteira, e também a Marlon, porque nós não contamos o detalhe do uso da manteiga como lubrificante", diz ele.

Schneider já fizera essa declaração antes. "Eles só me contaram sobre isso antes de filmarmos a cena e eu fique muito brava. Eu deveria ter ligado para meu agente ou ter trazido meu advogado para o set porque você não pode forçar alguém a fazer algo que não esteja no script, mas naquela época eu não sabia disso." Na sua fala, não fica claro se toda a cena não estava combinada, ou se o "detalhe" da manteiga foi a única surpresa. "Embora o que Marlon estivesse fazendo não fosse real, eu estava chorando lágrimas de verdade. Eu me senti humilhada e para ser honesta, me senti um pouco estuprada, tanto por Marlon como por Bertolucci", afirma.

Crendo nas declarações dela, do ator e do diretor, não houve de fato penetração anal. Além disso, embora a cena não estivesse no script, no todo ou em parte, ela foi avisada antes de começarem a gravar, e aceitou seguir em frente. Podemos então falar em violência sexual?

Podemos. E devemos.

Publicidade

Estupro não é apenas penetração - as leis que o definem formalmente variam mundo afora, mas tomando a nossa legislação como parâmetro, qualquer "ato libidinoso" feito com violência ou grave ameaça é estupro. E mesmo que não haja violência ou grave ameaça, mas de alguma forma "a livre manifestação de vontade da vítima" seja dificultada, ainda assim trata-se de crime sexual (no caso, violação sexual mediante fraude).

Por tudo isso acredito que a cena é criminosa. Pode até não o ser literalmente (o filme foi rodado na Itália, no início dos anos 70 - não conheço as leis do local e época). Mas no mínimo é desumano. A atriz tinha 19 anos apenas. Marlon Brando já era uma estrela, e Bertolucci um diretor consagrado. A situação foi construída de forma a tornar difícil a negativa de Schneider. "Eu era muito jovem para discernir melhor. Marlon disse mais tarde que também se sentia manipulado, e ele era Marlon Brando, então você pode imaginar como eu me sentia", disse ela. Pode ter sido voluntária, mas certamente não foi consentida.

Não podemos aceitar, em nome da arte ou do que quer que seja, a humilhação de alguém apenas para obter uma expressão mais verdadeira da cena, como Bertolucci admitiu ter feito. É injustificável. Quem age assim trata a pessoa como um meio para se obter algo, violando o mais básico preceito ético, como pensado por Kant: deve-se tratar os seres humanos como fins em si mesmos, não como meios para outros fins.

Se abrimos mão disso, abrimos mão da nossa humanidade. E sem ela nada é arte.

***

Publicidade

Férias para você, não para seu cérebro

 Foto: Estadão

Voyeurismo é a compulsão que algumas pessoas têm de observar anonimamente os outros fazendo sexo. Como o caso de Gerald Foos, que comprou um motel apenas para observar os clientes sem que estes desconfiassem. Seus quinze anos de anotações foram transformados pelo escritor Gay Talese no livro O voyeur (Companhia das Letras, 2016), que ao narrar a obsessão de um homem retrata a evolução do comportamento sexual entre os anos 60 e 80. Uma verdadeira pesquisa sobre a sexualidade, mas cercada de polêmica por ter sido feita sem consentimento de seus objetos de estudo.

Opinião por Daniel Martins de Barros

Professor colaborador do Dep. de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP. Autor do livro 'Rir é Preciso'

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.