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Psiquiatria e sociedade

Opinião|Antes de orar por Paris

Antes de orar por Paris, lembre-se: se não fosse o mau uso do nome de Deus, nem seria preciso invocá-lo agora. A justificativa por trás do terrorismo do Estado Islâmico é parte do espectro de um mesmo fenômeno - o fundamentalismo religioso - que sustenta boa parte da bancada evangélica. É só uma questão de grau.

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Atualização:

Eu não sou ateu. Como já disse antes aqui, sou cristão. Acredito que não somos só matéria, e penso que nossa insaciável busca pela transcendência não é mero efeito colateral de um cérebro complexo. Acredito que Deus existe. Mas sinceramente, não acho que adianta falar com Ele sobre Paris. Ou sobre Mariana. Sequer sobre o Petrolão. "Os céus são os céus do Senhor, mas a terra deu-a aos filhos dos homens", disse o salmista. Socorrer feridos, limpar a lama, fazer a justiça, tudo isso é trabalho nosso, não espere um milagre.

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Se há um milagre possível - esse sim, um bom motivo de oração - é a perseverança. Diante de tantas adversidades, milagre é continuar trabalhando por um mundo melhor. Persistir no socorro, na faxina, na denúncia, mesmo sabendo que nunca acabarão feridos, sujeira e corrupção. Esse é o ato divino necessário agora. O próprio Cristo afirmou, segundo o evangelista Lucas, "o Reino de Deus está em vocês". Por isso mesmo C. S. Lewis diz que Deus não tem inclinação a fazer o que cabe aos homens.

Religiosidade pura e simples não ajuda. Aliás, diante da onda moralista que vivemos, quando se propõe a proibição até da pílula do dia seguinte, é importante saber que a justificativa do Estado Islâmico (EI) faz parte do mesmo espectro de justificativas de Felicianos e Cunhas. Com intensidades diferentes, são todas formas de fundamentalismo religioso. Este não escolhe denominação - há cristãos e judeus que matam em nome da sua fé, como há muçulmanos também; até budistas - imagine - vêm matando por motivação religiosa. (Diz um amigo espírita que estes só não o fizeram por falta de tempo). O Alcorão incita violência? Depende do leitor. Bem como qualquer texto sagrado, nos mostra a História. Não são as religiões que são violentas, somos nós. Quando não nos matamos pelos deuses, é pelos times, pelas opiniões, por qualquer coisa. Só precisamos de uma desculpa.

Quem acha que encontrou a verdade tem desejo sincero de apresentá-la aos outros. Mas líderes políticos muitas vezes cooptam esse ímpeto dos fiéis, transformando-os em soldados de uma cruzada que, no fundo, responde a interesses nada piedosos. A rejeição a muçulmanos que cresce depois de cada atendado ajuda tais lideranças. Elas sabem que um dos fatores que levam os jovens a se aliar ao terror é a sensação de serem injustiçados, excluídos. Quanto pior para os muçulmanos, melhor para os terroristas. E alguns políticos evangélicos agem exatamente assim: criam fatos que aumentam a rejeição aos crentes, fomentando um espírito combativo em seus nichos eleitorais que aumenta o engajamento dos simpatizantes. Na próxima vez em que você vir um religioso midiático soltando uma daquelas bobagens que te faz ter raiva de crente, saiba que é isso mesmo que ele quer. É o atentado dele.

EI só existe porque há líderes usando pessoas de fé, que imaginam ser justo impor sua moral religiosa a todos. Guardadas as devidas proporções, é o mesmo modus operandi de muitos deputados da bancada evangélica.

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Antes de orar por Paris, lembre-se: se não fosse o mau uso do nome de Deus nem seria preciso invocá-lo agora.

 

Opinião por Daniel Martins de Barros

Professor colaborador do Dep. de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP. Autor do livro 'Rir é Preciso'

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