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Psiquiatria e sociedade

Opinião|Ansiedade de morrer

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Atualização:

E se eu não conseguir escrever um bom texto sobre o livro Meus tempos de ansiedade? Minha reputação será arruinada para sempre. Minhas mãos suam no teclado enquanto penso nisso, acho que vou deixar para mais tarde, escrever agora parece impossível. Mas expor assim a ansiedade não pode ser pior? Ainda existe tanto preconceito com relação aos transtornos mentais. Não foram exatamente essas as angústias que acometeram o autor, Scott Stossel, na jornada que empreendeu pelo mundo da ansiedade nesse mais recente livro? Misturando relato pessoal, pesquisa científica e história cultural, o livro lançado no Brasil pela Cia. das Letras é talvez o mais completo e abrangente trabalho leigo sobre os transtornos ansiosos. É muita responsabilidade resenhar uma obra de tamanho alcance - e se eu não estiver a altura da tarefa? Se ficar pensando nisso, aí mesmo que não conseguirei escrever nada.

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Essa emoção tão perturbadora, Stossel revela em suas pesquisas, pode literalmente bloquear o pensamento racional. Simplificando bastante um mecanismo complexo: as principais áreas cerebrais responsáveis pela sinalização de perigo são chamadas amígdalas, localizadas numa região profunda do cérebro. Quando estão ativas, alertam para uma ameaça potencial - por vezes antes mesmo que tenhamos consciência disso. Mas quando estão hiperativadas, como nas situações de ansiedade patológica, podemos chegar a experimentar verdadeiro terror. Com sua função de nos preparar para fugir ou lutar, se as amígdalas gritam assim tão alto acabam abafando o córtex frontal. Responsável pelo pensamento racional, pela avaliação fria das situações, ele fica falando sozinho tentando nos convencer a sermos razoáveis, pensar melhor no que está acontecendo. Não há negociação com os fóbicos. Uma das muitas teóricas citadas no livro, a psicanalista Karen Horney diferencia, contudo, ansiedade de medo - embora o mecanismo seja o mesmo, se ele entra em ação quando estamos diante de um perigo de morte vivenciamos essas reações como medo; já se for quando estamos diante de um computador, tentando escrever um texto sobre algo que teoricamente conhecemos bem, chamamos de ansiedade. Como agora.

É isso então? Essa boca seca, esse arfar acompanhado de uma leve vertigem enquanto procrastino a tarefa são meros mecanismos biológicos? Resultados de disparos erráticos do meu sistema de alarme, equivocadamente acionados pelo contexto artificial que chamamos civilização? Willian James, um dos pais da psicologia moderna, descobrimos no livro, acreditava que a causa do que viria a ser chamado de síndrome do pânico fosse a vida moderna - um sistema que evoluiu para sinalizar o perigo nas cavernas selvagens não pode funcionar adequadamente nas cidades civilizadas.

Mas com o conhecimento de quem vive no olho do furacão, Stossel não é inocente de achar tudo tão simples. A influência da cultura é central na ansiedade - senão, por que nas crises de pânico os americanos acham que estão enfartando enquanto os japoneses pensam que vão desmaiar? Ou qual a razão de os medicamentos que funcionam nos franceses serem menos eficazes para os chineses? E para além da sociedade ou da biologia, o autor - que se submeteu a diversas formas de psicoterapia - questiona também se sua real eficácia não apontaria para a realidade da vida psicológica, não meramente biológica.

Melhor encerrar por aqui. Biológica, psicológica, social e cultural, a ansiedade é tudo isso ao mesmo tempo. Da reação normal que nos protege ao terror que causa um sofrimento incapacitante, passando pelo estresse que aumenta a produtividade, ela é um excelente exemplo de como mente, corpo e cultura são inextrincavelmente ligados. Scott Stossel sabe disso melhor do que ninguém, e consegue alinhavar todos esses fatores de forma elegante. Patologicamente ansioso, ele também achava que não ia dar. Mas deu.

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Opinião por Daniel Martins de Barros

Professor colaborador do Dep. de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP. Autor do livro 'Rir é Preciso'

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