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Psiquiatria e sociedade

Opinião|A presidente sem vergonha

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Atualização:

Uma coisa em que sociólogos, antropólogos, psicólogos e mães concordam é que um pouco de vergonha é importante. Ninguém quer um filho sem vergonha porque ninguém quer ser mãe de um sem-vergonha. E os pesquisadores das ciências humanas são unânimes em classificar a vergonha como uma emoção social fundamental no processo da criação e manutenção dos laços sociais. Norbert Elias, só para citar um, afirma que tanto como o desenvolvimento da razão, o embaraço e o constrangimento foram centrais no processo civilizatório.

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Embora nós realmente não precisemos nos envergonhar o tempo todo, o senso da vergonha, ou seja, a possibilidade de que sejamos recriminados pelo nosso grupo (e por isso nos sintamos mal) ao quebrar alguma regra cultural - explícita ou implícita - paira constantemente em todo grupamento humano, ajudando a manter a coesão. Muito mais do que as leis, é sabido, o controle social informal é que sustenta a coletividade. Pensando assim fica mais claro porque é ruim ser um sem-vergonha.

Esse aspecto público, aliás, é um grande motor para nossos comportamentos. Quando as pessoas agem publicamente de uma maneira que previamente condenavam, mais do que rapidamente elas mudam de opinião, e passam a não mais ver problema onde antes viam. Em contrapartida, quando alguém defende publicamente determinado valor, ideia ou atitude, é mais provável que passe a agir em acordo com o que disse. A dissonância cognitiva que surge quando há tensão entre comportamentos e crenças é muito incômoda, levando-nos a qualquer malabarismo para acomodar o espírito. É por isso que quem divulga entre os amigos suas metas de emagrecimento, por exemplo, tende a perder mais peso do que quem faz dieta secretamente.

E deve ser por isso que a presidente disse que não temos nada do que nos envergonhar com relação aos preparativos para a Copa. Como ela não consegue voltar atrás e fazer com que as obras terminem no prazo e no preço, não tem mais como completar a infraestrutura de transporte ou aeroportuária, a única saída é se convencer de que está tudo bem ou então tolerar uma enorme dissonância cognitiva.

Infelizmente, ao fazer isso, acaba estimulando ainda mais a sem-vergonhice brasileira.

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Opinião por Daniel Martins de Barros

Professor colaborador do Dep. de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP. Autor do livro 'Rir é Preciso'

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