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Psiquiatria e sociedade

Opinião|A loucura contagiosa de Machado de Assis

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Atualização:

Acho que nunca vamos deixar de nos espantar com a genialidade do Machado de Assis. Uma coisa é ter o dom narrativo, escrever "bem". Outra coisa é ter uma capacidade de observação humana tão profunda a ponto de ser capaz de descrever doenças psiquiátricas ainda não descobertas.

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O competente editor de ciência da Folha de São Paulo, Reinaldo José Lopes, repercutiu em sua editoria a notícia sobre um artigo que publicamos esse ano no British Journal of Psychiatry, mostrando que o "bruxo do Cosme Velho" - apelido famoso de Machado - escreveu um conto no qual os personagens desenvolvem um quadro típico de folie a deux, conhecido como transtorno psicótico induzido.

Acho que vale a pena enriquecer a notíca com detalhes que não cabem na versão impressa.

Folie a deux significa, literalmente, loucura a dois, e foi formalmente descrito pelos franceses Lasegue e Falret, em 1877. O relato original descrevia a doença como uma síndrome de ocorrência mais prevalente entre mulheres vivendo confinadas, marcada por: 1) aparecimento de sintomas psicóticos coincidentes nos membros da família enquanto vivendo juntos; 2) sintomas psicóticos em duas pessoas em estreita associação; 3) transmissão de sintomas psicóticos de uma pessoa doente para uma ou mais pessoas saudáveis. É interessante que essas mesmas características foram incluídas nos critérios diagnósticos desde as primeiras propostas, e modificaram-se pouco desde sua elaboração até hoje.

O conto "O anjo Rafael" - disponível on line, descreve a vida de um homem que, acreditando ser o próprio anjo Rafael enviado por Deus à Terra, isola-se com sua filha em uma fazenda. Mantém-na nessa condição, sem contato com o mundo exterior, desde a infância até os quinze anos, quando, pouco antes de morrer, manda chamar para ela um noivo. Esse futuro marido descobre que a moça está sendo contaminada por delírios de seu pai: ela não só acredita que ele é um anjo, como defende tal ideia ante a incredulidade do noivo. Morto o pai, contudo, ela é levada para a cidade e após três meses está livre das crenças delirantes. Ou seja, a história faz o relato de um quadro que reúne todos os elementos posteriormente descritos por Lasegue e Falret: trata-se de uma mulher, confinada, vivendo em estreita associação com um familiar, que apesar de saudável desenvolve sintomas psicóticos coincidentes com os dele, causados por sua influência. Quando o pai morre e ela é afastada dele, os sintomas desaparecem.

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Será que Machado de Assis conhecia um caso assim e nele se inspirou? Se for este o caso, sua precisão no relato surpreende por ser no mínimo equivalente à dos médicos da época. Mas se tudo não passou de fruto de sua criatividade literária, sua genialidade fica ainda mais patente, e reforça o que o próprio Freud diria mais tarde: "O tratamento poético de um tema psiquiátrico pode ser correto, sem prejuízo de sua beleza".

Opinião por Daniel Martins de Barros

Professor colaborador do Dep. de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP. Autor do livro 'Rir é Preciso'

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