Não se adentra uma comunidade sem antes pedir licença, afinal de contas não se invade um lar sem antes bater na porta. Éramos então recebidos no acesso da rua mais movimentada para só dali começar a percorrer as ruas periféricas, num ziguezaguear sem fim, sendo guiados por nossas anfitriãs muito animadas. Vocês não podem imaginar a felicidade delas em nos receberem. Alegria contagiante. Devo reconhecer que assim que começamos, eu estava apreensivo. Saber que necessitávamos de escolta por lá me fazia sentir uma insegurança primal, daquelas de quando nos expomos ao diferente absoluto. Enquanto avançávamos, elas iam conversando com muitas pessoas no trajeto, e minha insegurança se dissolvendo em admiração. Contavam para um senhor sentado numa cadeira no meio da rua - não havia calçada - o propósito da nossa visita, ele sorria como quem diz: que lindo! E explodimos todos em risadas sonoras. Para outra mulher, no alto de uma construção que desafiava todas as regras estruturais possíveis, elas gritavam que essa deveria se juntar a elas na pratica milenar, num convite acolhedor. Viramos a rua e uma das que nos acompanhavam se encontra com alguém com quem combina de receber produtos que seriam entregues na sua casa nesse mesmo momento em que ela estava ocupada nos ciceroneando, e a outra prontamente disse que a cobriria. Outra das nossas guardiãs comentava com uma transeunte que cuidaria de seus filhos no dia seguinte para que ela pudesse trabalhar.
Naquele momento me dei conta de que não é à toa que chamamos aquele lugar de comunidade. Havia uma unidade comum incrível, uma rede de suporte coletivo de invejar qualquer morador de bairro de classe média alta. Eu, vindo da tal 'república' de Higienópolis me pegava completamente surpreso com a comunhão que presenciava. Eu só conseguia pensar: essas pessoas são felizes, essas pessoas são felizes. Já havia visitado outras comunidades na época da graduação, mas penso agora que talvez um certo distanciamento não me permitisse gozar dessa comum união. Ali, no meio daquele rico grupo de mulheres, eu me sentia parte delas. Isso trazia compreensão e pertencimento. Uma mesma sensação boa que percebia no sentimento que cada uma delas nutria pelas outras. Elas eram felizes sim, mas mais do que isso, eu intuía que elas eram mais felizes do que eu.
Parceiras na urbanidade polis, enquanto numa o sol brilha intenso no peito de suas filhas, na outra imperam as relações higiênicas. Eu jamais conheci meus vizinhos - salvo alguns amigos vizinhos. Caminho em meu bairro com muita segurança e desenvoltura, mas os muitos porém discretos cumprimentos que dou não tem metade da afetividade e cumplicidade que pude notar nas lindas mulheres de Heliópolis e seus companheiros de lar. Não há música alta - salvo quando eu mesmo resolvo dar umas das minhas festas de arromba e egoistamente atrapalhar meus vizinhos sem nada lhes dar em retorno -, não há berros, não se vê gente no meio da rua. Ao mesmo tempo, não há rua para gente, apenas leito carroçável para o automóvel. E dele corremos rápido para dentro de nossas casas, para trás das grades que nos 'protegem'.
Ali aprendi que um bairro pode ser um lar acolhedor, mesmo que em situações de tremenda precariedade. E divido aqui com vocês algumas perguntas que desde então carrego sempre dentro de mim: onde foi que perdemos esse senso de coletividade e comunidade em nossos bairros abastados e supostamente seguros? E neles estamos seguros do que exatamente? Protegidos do comprometimento com o outro, em relações de maior intimidade e cumplicidade? E que lares seremos capazes de construir no isolamento das nossas celas gradeadas?
Durmamos com um barulho desses.