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Reflexões sobre um morar autêntico

As melhores coisas da vida não são coisas

Por Gustavo Calazans
Atualização:
Ilustração de Denis Diosanto, encomendada e espalhada pela amada Adriana Charoux, e que virou um lema na vida. Foto: Estadão

Às vezes precisamos de grandes baques na vida para entender pequenas coisas, dessa simplicidade que ajuda a nos atermos ao que é realmente fundamental na existência. Outras vezes essas mensagens nos vêm em forma de música e dança, celebração e alegria. Assim foi, para mim, a chegada aos 40. Claro que a sua proximidade foi me deixando bastante ansioso. Acredito que esse sentimento seja comum para muitos - até a astrologia preconiza que a proximidade da chamada oposição de Urano, característica que começa a despontar seus sinais nessa idade, vai provocar nossos nervos, causando uma descarga de energia sem precedentes em nosso caminho. E toca encontrar canais de liberação para não entrar em curto circuito. Mudanças são necessárias e muitos ajustes de rota para nos mantermos fiéis aos nossos propósitos. Não somos mais tão novos, já não temos a mesma vitalidade e sentimos o peso dos anos em nossos corpos, esses que não respondem mais com a mesma rapidez aos estímulos e às demandas do mundo. E assim vamos aprendendo a lidar com as peças que o tempo vai nos pregando. Ou será que são nossas escolhas na vida que vão armando essas armadilhas, para o bem e para o mal?

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Esse empilhamento de camadas de experiência que se desdobram nesse misterioso universo de tempo e espaço é, sem dúvida, resultado de umas tantas escolhas - e realmente me pego pensando se escolhemos ou se somos escolhidos. Talvez um pouco de cada coisa, ou muito de uma e pouco de outra. Quem sabe, quanto mais donos de nossas vidas vamos nos tornando, mais escolhemos e menos somos reféns das escolhas do destino. E ainda assim, não há como se libertar totalmente de sermos escolhidos, posto que estamos no mundo. Podemos então, com muito dedicação e um pouco de sorte, decidir como reagir a tudo isso. Ufa, haja sabedoria!

Eu sigo usando casos verdade, e na maioria das vezes, 'causos' autobiográficos, para exemplificar processos ricos que vão se passando na minha experiência com meu ninho, na esperança de que possam encontrar eco noutras partes, na vivência de alguns de vocês que me leem. Aliás, me pego algumas vezes preocupado em não ficar por demais auto-referenciado, mas a experiência da vida é, afinal de contas, de uma perspectiva individual, não é verdade? Então se posso tomar os olhos dos outros emprestados para tentar ver por novas lentes, que assim seja. E daí vem o desafio de trazer aquilo que conhecemos pela mente para a materialidade do corpo, da ação. Exercício que faço constantemente, mirando as vidas ao meu redor e abastecendo tanto meu repertório existencial, que me ponho aqui a querer oferecer para vocês um pouco do mesmo. Só uma reflexão no meio de outra, na tentativa de validar minha escolha nessa coluna. Peço perdão por tanta digressão!

Fato é que, ao chegar próximo dos meus 40, junto com a ansiedade dessa data tão icônica, fui assolado por um desejo incontrolável de dançar. Sozinho, acompanhado, vestido ou não, com fones de ouvido quando já era muito tarde ou com as caixas gritando bem alto em tardes ensolaradas ou noites chuvosas. Não fazia diferença, o que me interessava era colocar meu corpo em movimento. Havia um desassossego visível, mas que tentava a todo custo se transformar em algo belo no meio de alguns sentimentos não muito agradáveis. Já vinha de alguns anos de desconforto na minha casa, sentindo que ela não contava tanto do que eu entendia de mim. E a perspectiva de chegar nessa idade e olhar para trás, avaliando tudo que tinha conquistado do que eu queria - ou achava que queria - e aquilo que não tinha nem chegado perto, foi me deixando muito crítico com as estruturas que havia construído ao meu redor. Essa visão obviamente recaiu fortemente sobre meu lar. Era como se capturar com a retina o espaço ao meu redor me deixasse tão aflito, que deixar essa energia sair pela transpiração fosse a melhor saída.

Até que um dia percebi que a minha casa era uma colagem de objetos que, em sua grande maioria, tinham sido presentes ou heranças. Tirando alguns móveis que comprei e poucos objetos de desejo - nunca fui muito de desejos incontroláveis -, 90% dos objetos da minha casa me foram dados por pessoas queridas. Muitas dessas coisas eu nem mesmo gostava, mas ali estavam, reunidas em alguma mesa ou estante, penduradas nas paredes ou apoiadas no piso. E fui entendendo que meu desafio nesses anos todos tinha sido o de editar essa história, organizar essas coisas todas de forma a encontrar beleza não nelas individualmente, mas no conjunto da obra. Mas o mais importante: não me interessava ali o que estava sendo reunido na sua qualidade de coisa, mas no quanto podiam me nutrir do afeto dessas pessoas amadas que me escolheram, ou se deixaram ser escolhidas para trilharem o caminho ao meu lado. E então fui invadido por uma vontade irrefreável de comemorar com essas pessoas todas essa descoberta e a conquista dessa nova compreensão. Finalmente tinha descoberto a verdade sobre o poder das coisas sobre mim.

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Vendi meu carro, uma outra "coisa" que tanto valorizamos, mas que tanto atrapalha a possibilidade de uma vida menos acelerada, e transformei ele numa grande festa. Essa experiência que está guardada na memória de todos que compartilharam comigo daquele momento mágico. E trabalhados na metalinguagem, usamos as coisas para gritar bem alto como podíamos ser livres delas. Não era uma mera festividade, mas o início de um processo de fazer as pazes comigo mesmo e, por conseguinte, com meu lar. Por que ali entendi algo que já intuía desde sempre, mas que naquele instante foi assimilado e apropriado pelo meu corpo. E que me ajudou muito a apaziguar as insatisfações e questionamentos dessa fase da vida. No meio dos meus amigos mais queridos e num ápice de êxtase coletivo, finalmente me apropriei desse conceito tão sábio, embora tão difícil de fazer virar realidade. De que as melhores coisas da vida definitivamente não são coisas.

Tamanha a vontade de gritar aos quatro ventos a minha descoberta, que 300 lambes desse foram distribuídos durante a festa. Até hoje encontro um deles colado num carro, numa geladeira ou na agenda de um amigo. Ilustração de Denis Diosanto. Foto: Estadão
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