Percorrer estreitas estradas esburacadas debaixo de um sol escaldante, penetrando o Brasil profundo, atrás de conhecer a experiência de uma comunidade que busca na arte mais do que lhes foi tirado com a escassez dos peixes no rio São Francisco. Essa foi a deliciosa aventura dessa semana. São mulheres e homens, pescadores e pedreiros, trabalhadores dos canaviais e donas de casa que, diante da dificuldade de encontrarem uma forma digna de sobrevivência em seu lar natal, a simpática e delicada vila da Ilha do Ferro, em Alagoas, descobriram no mergulho criativo uma saída para a precariedade material.
Seguindo os passos de Fernando Rodrigues, filho de um fabricante de tamancos que descobriu já na vida adulta o fazer artístico, uma linhagem impressionante de artistas únicos se desenvolveu, cada um com uma linguagem própria e um estilo bem definido. Aberaldo, Salvinho, Dedé, Morena, Faguinho, Eraldo, Vieira, Vandinho, Walmir, Vavan, Cícero, Zé Crente e muitos outros escondidos detrás das delicadas fachadas das casas simples. Seu Fernando, como era conhecido, inventou não só móveis e peças lindas, criou um movimento dentro da pequena vila, cultivado diligentemente por anos como quem cuida de um roçado, criando espaço para que hoje eles tenham todo nosso respeito e a admiração.
Mais do que lindas peças de arte popular, o que encontrei foram lindas histórias de pessoas comprometidas com uma forma alegre de encarar a vida. Seus lares abrigam o seu fazer, e é num espaço contíguo às suas casas onde podemos encontrá-los laborando sobre a madeira, pintando bonecos e pássaros entalhados com maestria, ou ainda orgulhosamente nos apresentando suas últimas criações. Eles vivem com pouco, mas tem muito a oferecer. Fui recepcionado por Rejânia, filha de Seu Fernando, com a hospitalidade generosa de quem sabe que tem muito a ensinar pelo seu exemplo de vida. Poucas vezes na vida testemunhei gentileza tão desinteressada. Não importava se fôssemos comprar algo ou não, ou se a arte de um me comovesse mais do que a de outro. O que importava ali era que fossem reconhecidos pelo seu trabalho e pela sua postura diante da vida.
Um pensamento me invadiu durante a visita: de que tudo o que me aproxima do humano em mim, me coloca mais perto de encontrar um lar autêntico. Na cidade grande não há hospitalidade como vista ali, onde a vila é lar de todos. Entrei nas casas acanhado, mas meus anfitriões me diziam felizes para relaxar. Essas pessoas gentis em verdade nos convidam a encontrar dentro de nós mesmos as respostas para nossas aflições. Ver a riqueza do trabalho desses artistas e a sua satisfação mostrando sua produção me fez pensar como hoje viver numa grande metrópole pode engolir nossa espontaneidade e dificultar uma relação sadia com o nosso fazer. Ver seres humanos vivendo mais próximos do humano neles me fez pensar que há que se resgatar essa qualidade visceral com urgência.
Enxergar ali a possibilidade de uma vida mais simples e calcada no encontro com a própria autenticidade pode parecer discurso romântico sobre a promessa de um refúgio idílico distante dos sofrimentos e das privações - importante lembrar que a miséria ali é profunda e esses artistas merecem maior reconhecimento, e que não pretendo de forma alguma fazer aqui o elogio da pobreza. Mas entender essa parte fundamental da existência recuperada ali pode nos ajudar a pensar caminhos para nos reconectarmos com nossos próprios propósitos.
Talvez seja trazendo um pouco da Ilha do Ferro para casa, assim como valorizando outras tantas riquezas de outros tantos lugares tão criativos como esse, e tão mais pungentes do que qualquer coisa que possamos produzir enquanto mantivermos oculto o artista que cada um de nós mantém escondido atrás de nossos personagens sociais, que consigamos recuperar essa centelha criativa. Entender a própria construção material do lar como uma meticulosa costura de retalhos - de memórias e experiências - pode nos fazer lembrar dessa capacidade fundamental humana de criar a partir dos elementos que temos disponíveis. Os artistas da Ilha do Ferro se relacionam com a madeira como ponto de partida e a partir dela constroem seus sonhos. Já nós da cidade podemos começar sonhando nossos lares, num fazer artístico de edição. 'Colando' a arte daqueles que nos impactam podemos construir lares autorais que nos representem. E, quem sabe um dia, encontremos formas mais concretas de nos expressarmos artisticamente, nos relacionando com o fazer e os símbolos com mais simplicidade e originalidade.
Nota: Já faz anos que, instigado pelo olhar curioso e certeiro da querida Zizi Carderari para coisas belas, tenho vontade de conhecer a Ilha do Ferro e sua arte. Minha gratidão a ela e à querida Evelyn Muller por nos conectarem com essa riqueza encravada à beira do São Francisco.