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Opinião|Quando os celulares morrem

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Depois de 24 horas, como nada ocorria, começou o desespero.

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(New Old Stock)

Porciúncula acordou de ressaca. O aniversário do Bogéa tinha sido o máximo, mas abusara da sangria. Quando ficava assim, além daquela dor de cabeça horrorosa em cima das têmporas, perdia a noção do tempo. Como sempre fazia ao despertar, de ressaca ou não, foi logo levando a mão ao criado mudo e pegando o celular. Ao tentar ver o horário deu com a tela sem nenhuma luminosidade, sobre o negrume havia apenas uma mensagem em letras roxas: CANCELADO.

Porciúncula tentou lembrar se havia pago a conta da operadora, mas teve que fazer um grande esforço, já que todas as suas anotações e compromissos estavam na agenda daquele smartphone recém-morto. Foi em vão. Não estava mais acostumado a recordar-se de nada, era o aparelhinho que fazia tudo por ele.

O mesmo fenômeno ocorrera com todos da rua, do bairro, da cidade, do estado, do país, do continente e do planeta de Porciúncula. Todos os bilhões de celulares da Terra, naquele dia, amanheceram ou anoiteceram com a tela preta e a mensagem: CANCELADO.

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Durante o primeiro dia houve uma calmaria. Por não saber como agir, a grande maioria das pessoas preferia ficar em casa, em choque, e ver se o aparelho voltava a funcionar. Depois de 24 horas, como nada ocorria, começou o desespero. Todos queriam se queixar a alguém, a algum órgão responsável, mas não sabiam mais encaminhar-se a um edifício físico. Tudo era feito online há décadas. A paralisia, a sensação de fragilidade, só aumentava.

Os suicídios vieram logo. Milhares e milhares em completo pânico lançavam-se de prédios, afogavam-se, envenenavam-se. Os corpos empilhados nas ruas trouxeram a peste. Em tempo recorde, a população global diminuiu em dois terços.

Felizmente, o histórico humano é de superação. Numa manhã nevoenta, um grupo desgarrado em meio à uma metrópole vazia e fantasmagórica encontrou uma antiga biblioteca pública. Abrigaram-se ali das hordas de famélicos que atacava outros humanos para saciar a fome.

O mais idoso do bando, um velhote arqueado dos seus 90 anos, ao ver as obras nas estantes conseguiu ainda emocionar-se. Correu os dedos ossudos pelas lombadas e, a partir daquela noite, passou a ler regularmente para seus iguais.

Passados muitos anos daquela primeira madrugada gélida na biblioteca, o mais novo dos ouvintes do provecto leitor inventou um aparelho que acabou ressignificando toda a humanidade. Era um aparelho todo preto, com uma base que trazia um disco giratório e estampava números de zero a dez. Por um fio, essa base unia-se a um fone e a um bocal. Todo o conjunto ligava-se, através de uma extensa fiação, a outros equipamentos semelhantes mundo afora. Com a nova invenção, as pessoas voltaram a comunicar-se de um modo menos obsessivo e mais civilizado.

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Quando o artefato popularizou-se, a vida voltou a florescer pelos continentes. Mas Porciúncula não sobreviveu para ver.

Opinião por Carlos Castelo

Carlos Castelo. Cronista, compositor e frasista. É ainda sócio fundador do grupo de humor Língua de Trapo.

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