Os papeizinhos de tia Conceiça.
(Foto: Carlos Castelo)
Era uma tradição. Todo santo ano, no réveillon, tia Conceiça fazia um círculo com os familiares de mãos dadas. Dizia umas palavras do Evangelho e abria pra quem quisesse dar a sua mensagem pessoal. Antes do evento, cada parente recebia um papelzinho onde estava escrito: “eu perdoo”. Pensava-se em alguém que nos havia ofendido e ficava-se de bem. Para tanto, bastava queimar a folhinha, com o nome correspondente escrito, no lume de uma vela. Aquele 31 de dezembro, por volta das quinze pra meia-noite, não foi diferente. Depois de citar Eclesiastes, tia Conceiça perguntou se alguém queria se manifestar. Pediu a palavra tia Maroquinha.
– Que o ano que agora nasce seja como uma janela aberta para um tempo de felicidade, paz, entendimento e…
Nesse instante, Acácio cutucou Iêda.
– Tu me perdoa?
– Lá vem…
– Aproveita o momento e faz essa caridade, minha linda…
– O que foi que te falei antes de vir pra cá, Acácio?
– Que esse foi o último ano que a gente passou junto…
– Pois então, tchau…
– Só que você diz isso todo ano e, na hora do papelzinho, acaba escrevendo “Acácio”. Escreve agora também!
– Mudou tudo, meu filho. Eu não te perdoo mais, não. O réveillon passado foi teu último ano bom.
– E o espírito cristão, Iêda. Foi parar aonde? Virou crente, foi?
– Que crente, Acácio. Tá maluco? Olha tão rezando o Pai- Nosso… e não nos deixei cair em tentação e livrai-nos do mal…
– Amém! Agora me diz, é tão grave a minha falta? Chegar em casa com uma cueca escrita com lápis de rímel “Eu quero é rosetar” por acaso não pode ter perdão?
– Na minha opinião é imperdoável…
– E essa bandalheira na política? Os caras roubando na cara-dura, pintando os canecos na televisão, e tudo perdoado? Pra eles têm misericórdia? Fala já, Iêda! Espera, fala agora não, a Ave-Maria…
– … agora e na hora de nossa morte, amém!
– Amém! Diga na minha cara então: por que perdoam ladrão, corrupto e eu não?
– Te benze, Acácio! Olha a minha tia te olhando!
– Tô me benzendo, pô…
– E o “sinal da cruz”?
– Pronto, pronto, amém, amém. Ô, meu Deus.
– Se fosse só isso da cueca, eu até que fazia um esforço e desculpava. Mas e o negócio dos filmes?
– Filmes?
– Ai, Acácio, não se faz de besta. A encomenda que tu fez pela internet: três caixas com não-sei-quantos filmes de pornografia. Pensa que não vi o canhoto na tua carteira?
– Era pra revender, amor. Comprei no Paraguai junto com umas caixas de cigarro, pra fazer dinheiro na Galeria Pajé e te dar o carro que prometi.
– O carro era zero?
– Tinindo de zero, juro. Olha o beijo no dedinho…
– E você se arrepende?
– Tô até mudando de ramo, vou vender bíblia, santinho. Ó, tô até ajoelhado.
– Então reza uma Salve-Rainha, reza…
Acácio ficou orando, de olhos fechados, enquanto Iêda queimava o papelzinho do perdão na vela. Ao fundo, fogos de artifício.