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Opinião|O patinete do Gulliver

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Dois anos de Crônica por Quilo hoje.

 Foto: Estadão

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Foto: Carlos Castelo

Virei cronista na infância. Sempre fui aquele garoto que ia ver western na matinê com os primos e voltava com uma versão mais sedutora do passeio. Para eles tínhamos comprado ingressos, pipocas, guaraná caçulinha e assistido o Anthony Steffen dar uns tiros. Para mim, o bilheteiro manquitola do Cine São José era um serial killer, que disfarçava suas práticas criminosas bancando o bonzinho na bombonière. Os ruídos que os primos nem percebiam na poltrona de trás era o seu Felismino, dono do armarinho, bulinando a balconista da loja. E o trajeto a pé na rua, de volta para casa, era narrado como se fôssemos argonautas da nau de Ulisses. Um cachorro sem coleira virava uma hidra de sete cabeças a nos perseguir.

Por causa disso, todos preferiam me ouvir. A bem da verdade, eu não mentia. Só temperava a realidade com pitadas de quimera. Além de aplicar um ritmo cadenciado à explanação. Estava dando uma de Karl Ove Knausgård, aos 13 anos, e nem percebia que já tinha uma queda pela autoficção.

Naquela época fiquei conhecido no colégio por engabelar o marrento professor Amílcar, de Literatura. Foi quando ele me chamou à frente da classe para fazer um resumo de As Viagens de Gulliver.

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O problema é que eu tinha lido apenas 20 páginas do clássico. Mesmo assim dirigi-me à lousa e iniciei a fala. Tinha 15 minutos para liquidar a fatura.

Como não sabia nem 5% da história criada por Swift, optei por supor como teria sido a infância e a adolescência do personagem. Os problemas muitos que o herói teve de administrar: de como os pais o repreendiam por ele fazer xixi na cama, sua fase com o rosto repleto de acne, seu primeiro patinete...

Intrigados, mestre Amílcar e a classe ouviam aquele bizarro relato da formação do caráter gulliveriano para ver onde aquilo ia dar. Quando eu não tinha mais o que inventar, tocou o sinal.

Parei de suar frio. Alguns colegas levantaram os braços pedindo que eu desse mais detalhes. Como Gulliver resolveu a questão das espinhas? A mãe parou de lhe surrar por ele mijar nos lençóis? Com quem ele aprendera a andar de patinete?

Amílcar interrompeu-os:

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- Castelo, nota 5! 10 pela criatividade, zero pela cara de pau de não ter lido o livro.

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Daquele dia em diante passei a dar valor à minha vocação para a fantasia.

Na faculdade de jornalismo editei um jornal chamado O Matraca. E nele imprimi meus primeiros textos de humor. Foi um relativo sucesso entre os bichos-grilos da Vila Madalena, mas o capital de giro era o meu carro, o dinheiro chegou ao fim, e encerramos as operações no 14º número.

Acabei sendo descoberto pelo Estadão na década de 1980. Ali fiquei escrevendo, todas as sextas, na coluna Antena, do Caderno 2. Drummond, Fernando Sabino, Rachel de Queiroz e Caio Fernando Abreu, eram os colaboradores dos outros dias. Não preciso dizer que fiquei me achando o S. J. Perelman do Piauí por um bom tempo.

Até descobrir que ser cronista no Brasil, na era das redes sociais, é o equivalente a ser imigrante polonês em Londres em 2016. A maioria dos editores simplesmente lhe enxerga como uma amolação.

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Malgrado tanta decepção, hoje completo dois anos de Crônica por Quilo. O que comprova que nunca vou perder essa mania de inventar que Gulliver andava de patinete.

Opinião por Carlos Castelo

Carlos Castelo. Cronista, compositor e frasista. É ainda sócio fundador do grupo de humor Língua de Trapo.

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