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Opinião|O Homem Etanol

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Atualização:

Uma passagem do cotidiano pandêmico.

 

 

 

 

(Imagem de mohamed Hassan por Pixabay)  

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Foi dormir aquela noite com um comichão nos pulsos. Um repuxar e um esquentamento nas extremidades. Parecia como quando uma vez caiu da moto e raspou os cotovelos. Se não melhorasse passava uma pomada de arnica pela manhã. De madrugada deu sede. Saiu da cama, procurando não fazer ruídos que incomodassem a mulher. Na escada notou que os pulsos estavam meio inchados, como numa queimadura recente. Por debaixo da pele, formara-se um líquido. Depois de beber foi até a caixa de remédios e pegou a arnica. Espalhou-a nos pulsos com cuidado e retornou à cama.

Acordou cedo. Tinha uma reunião por teleconferência com o chefe do departamento. Ao tomar o desjejum percebeu que as bolsas estavam maiores. Seria preciso mais uma aplicação de arnica antes de começar o trabalho. Como a ardência havia diminuído decidiu aplicar a pomada com mais vigor, fazendo com que o bálsamo entrasse profundamente na pele. Foi quando, por um pequeno furo no inchaço, saiu o líquido. E esvoaçou pela sala como um spray.
Estavam, a mulher e ele, há meses enfurnados em casa. Haviam passado por diversas situações inéditas naquela peste interminável, mas aquilo era realmente novo. Interrompeu a massagem cutânea e decidiu apertar um dos pulsos. A borrifada atingiu em cheio um livro na estante. Pegou-o pela borda e cheirou: parecia álcool em gel.
Procurou participar da teleconferência sem se lembrar do ocorrido. Terminada a conversa, voltou a olhar os braços. A mulher estava na cozinha. Ele pegou um pano, apertou o pulso direito algumas vezes e embebeu-o com o líquido. Foi até a esposa e pediu que ela cheirasse:
- Esse pano tem cheiro de quê? - perguntou.
- De álcool, ora - disse ela.
- Certeza que é álcool?
- Claro, ela confirmou. Depois pegou o pano e passou sobre os vidros da janela.
- Olha aí, tudo transparente! Se isso não for álcool, não sei mais cuidar de casa.
Ele foi para a sala e ficou corrigindo os relatórios para enviar ao gerente de Processos. Passava o tachado em cima de algumas frases que estavam incorretas e olhava para os pulsos. O corretor ortográfico apontava um erro, corrigia e novamente verificava a novidade anatômica no seu corpo. Riu sozinho ao notar que as duas bolsas pareciam as que o Homem Aranha tem nos pulsos e soltam teias. Disse, de si para si: Homem Etanol. E riu de novo.
Tocaram a campainha. Era o delivery do supermercado. Pegou as sacolas plásticas, dispôs no chão da cozinha e automaticamente começou a apertar as bolsas para higienizá-las. Logo, a mulher percebeu a novidade.
- O que você está fazendo? - ela perguntou.
- Apareceram estas bolsas nos meus pulsos, elas têm álcool em gel - ele disse, exibindo-as.
- Do nada?
- É, amanheci assim.
- Você aperta aí e o álcool espirra?
- Isso - ele disse demonstrando numa sacola.
- Dói?
- Não dói nada. Parece até que já nasci assim.
A mulher foi até o armário; ele ficou desinfetando os pacotes, as latas de conservas, os frios. Ela voltou com uma pilha de louças:
- Ainda tem álcool aí? - perguntou.
- Tem bastante. Parece que, quanto mais eu uso, mais as bolsinhas enchem.
- Então passa nestes pratos. Depois te dou mais...

Opinião por Carlos Castelo

Carlos Castelo. Cronista, compositor e frasista. É ainda sócio fundador do grupo de humor Língua de Trapo.

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