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Opinião|Mon petit quilô

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Foto do author Carlos Castelo
Atualização:

Jorge andava passando nervoso.

Acordava, comia torradas com café preto, ligava para os lugares

querendo mostrar o portfólio e ouvia negativas.

Ultimamente ouvia-as e xingava, antes de bater o telefone.

Depois, encaixava uma bebida forte pra rebater.

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E saia batendo pernas, tresandando, sem destino certo.

Vivia naquele apartamento alugado há seis meses.

Uma agência grande o botara no olho da rua e, para pagar as contas,

tivera de vender o quatro dormitórios onde residia na Vila Nova Conceição.

Mas o tropeço vem sempre acompanhado de um tombo.

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O comprador não pagou o imóvel, a ação corre na Justiça, e Jorge anda engolindo sapo.

Esperou dar meio-dia, botou a "roupa de mostrar pasta" e foi almoçar.

A situação estava muito longe de permitir que ele comesse no seu trio de favoritos:

DOM, Pobre Juan, Attimo.

Os bares onde ia estavam mais para botecos de esquina do que para os outrora frequentados.

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Mesmo assim, com seu paletó Ricardo Almeida modelo 2001,

Jorge ainda fazia bonito no Quilo de Dona Filó -

que ele chamava carinhosamente, fazendo biquinho, de "mon petit quilô."

Ao adentrar majestoso, Jorge pediu, como de costume:

- A minha cerveja, dona Filó.

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Prontamente atendido, pegou uma porção de salada, arroz, feijão e ovo.

Depois sentou-se à mesa, ao lado de um casal de escriturários.

Tomou um gole da bebida e foi ajustando a vista à penumbra

do velho restaurante caseiro.

Depois de alguns instantes, deparou-se com uma imagem que o surpreendeu.

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Do outro lado da sala havia um outro homem de terno, como ele.

Era a primeira vez que via naquela birosca, fora ele mesmo,

um cidadão naqueles trajes.

Foi afinando a visão.

Depois de muito depurá-la, chegou à uma conclusão: era o Nunes.

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Parecia irreal.

O Nunes era um dos maiores contatos publicitários do país.

Em sua sala havia um diploma enorme que ele havia recebido do "staff" da

Norwegian Foods onde a diretoria o classificava,

entre outras coisas, como "pessoa-chave".

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O Nunes estava comendo no Quilo de Dona Filó!

"Devem ter colocado rebite nessa cerveja", pensou Jorge.

Logo em seguida, o contato o cumprimentou de longe.

Foi até a mesa e procurou ser simpático.

- Nunes? Pombas, quanto tempo? Só assim a gente consegue almoçar juntos?

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- E aí, Jorjão? Como andam as coisas? - respondeu o outro,

engolindo uma garfada de arroz e feijão.

- Tão indo, tão indo...

- Mercado tá difícil, né?

- Uh, nem fala, Nunes. Complicadaço.

- Você tá em agência?

- Não. Tô independente.

- O que você quer dizer com independente? - quis entender Nunes.

Jorge coçou a cabeça, tentou explicar:

- Cansei do esquema CLT. Montei meu espaço próprio.

- Que nem eu - replicou Nunes, comendo um naco de jiló frito.

- Ah, também está fazendo parcerias?

- Sim, sim, é o melhor negócio no momento.

Houve um breve silêncio na mesa.

- Vamos conversar então. Anota meu número aí. Tô sem cartão.

- Saco! Eu também. Roubaram meu celular,

vou te dar um número fixo, da casa da minha ex-mulher.

Trocaram contatos.

Ao sair, Nunes perguntou:

- Vem sempre aqui?

Jorge respondeu, sem titubear:

- Não. Vim fazer pesquisazinha de mercado, ver como classe C, D come.

- Coincidência: vou dar uma palestra na Associação sobre restaurantes populares

e quis ver como era um quilo.

- Horror, né?

- Rapaz, que comidinha de merda.

- Liga pra mim, hein, não esquece!

- Claro, vamos trocar figurinhas, meu velho.

- Fasano?

- Se não tiver melhor, vamos lá mesmo...

 

Opinião por Carlos Castelo

Carlos Castelo. Cronista, compositor e frasista. É ainda sócio fundador do grupo de humor Língua de Trapo.

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