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Opinião|Mitos oxidados

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Atualização:

Lourenço Diaféria, o cronista que harmonizava com meu desjejum.

 

(Pixabay) Foto: Estadão

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Em 30 de agosto de 1977 morria um herói: o sargento Delmar Holenbach. Estava com 33 anos. E, após três dias no Hospital das Forças Armadas, não resistiu às mais de 100 mordidas que levou das ariranhas do zoológico de Brasília. Ele foi atacado quando tentava salvar o menino Adilson Florêncio da Costa, de 13 anos.

Dois dias depois, o cronista da Folha de São Paulo, Lourenço Diaféria, publicou um texto cujo título era Herói, Morto, Nós.

Lembro-me de lê-lo pouco antes de ir para a escola. Era um ritual meu apreciar o jornal que meu pai deixava dobrado sobre a mesa depois de sair, bem cedinho, rumo a seu trabalho na distante Vila Zelina.

Diaféria harmonizava com desjejum. Combinava com conversas matinais sobre a leveza e a graça das frases. O cheiro do pão na chapa, as espirais de fumaça do café, o farfalhar das páginas do periódico - tudo era parte da aurora criada por aquele homem pacato do Brás.

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Mas, na manhã de 1º de setembro, uma chave virou. O Lourenço indulgente deu lugar ao Diaféria indignado. Escrevia ele num trecho de sua coluna:

 "O duque de Caxias é um homem a cavalo reduzido a uma estátua. Aquela espada que o duque ergue ao ar aqui na Praça Princesa Isabel - onde se reúnem os ciganos e as pombas do entardecer - oxidou-se no coração do povo. O povo está cansado de espadas e de cavalos. O povo urina nos heróis de pedestal. Ao povo desgosta o herói de bronze, irretocável e irretorquível, como as enfadonhas lições repetidas por cansadas professoras que não acreditam no que mandam decorar.

O povo quer o herói sargento que seja como ele: povo. Um sargento que dê as mãos aos filhos e à mulher, e passeie incógnito e desfardado, sem divisas, entre seus irmãos.

No instante em que o sargento - apesar do grito de perigo e de alerta de sua mulher - salta no fosso das simpáticas e ferozes ariranhas, para salvar da morte o garoto que não era seu, ele está ensinando a este país, de heróis estáticos e fundidos em metal, que todos somos responsáveis pelos espinhos que machucam o couro de todos. Esse sargento não é do grupo do cambalacho."

Os ministros militares do presidente Geisel logo vislumbrariam uma ofensa ao Duque de Caxias. O cronista seria preso por cinco dias, na Polícia Federal, em São Paulo. À época do governo Figueiredo, o condenariam a oito meses de prisão, com direito ao "sursis'. Desta vez, seu advogado recorre ao Supremo Tribunal Federal, reformando a sentença do Superior Tribunal Militar, e absolve o escritor.

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"Apenas se constrói com solidez sobre o passado", ensinava o poeta T.S. Eliot. Por isso é razoável, às vezes, conjugarmos no pretérito para não nos plagiarmos no presente.

Contemplando agora todo o desgoverno, vindo de quem deveria nos guiar, fica um desejo. Que marchem apenas os heróis sargentos com o povo. Que passeiem, incógnitos e desfardados, sem divisas, entre seus irmãos. Lourenço Diaféria  aprovaria o fim dos mitos oxidados.

 

 

 

 

 

 

Opinião por Carlos Castelo

Carlos Castelo. Cronista, compositor e frasista. É ainda sócio fundador do grupo de humor Língua de Trapo.

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