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Opinião|Meu guri

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Foto do author Carlos Castelo
Atualização:

"O guri no mato, acho que tá rindo". (Buarque, Chico)

(Imagem de pranavsinh Suratia por Pixabay)  

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Era domingo. Alicinha e Caíto estavam pagando a conta no restaurante japonês do shopping. Almoçar no Yoshie era um programa frequente do casal. O chef  até preparava sashimis especiais em forma de flores e os presenteava. Terminaram o chá verde, pegaram a SUV no valet e retornaram ao dúplex.

Numa travessa da avenida Santo Amaro, Alicinha avistou o menino na caçamba de lixo. Era um gurizinho, dos seus nove anos, assustado, que remexia a lixeira em busca de restos.

- Ai, amor, que dó! O pobrezinho catando comida...

 Caíto estacionou o carro e ficou olhando a cena. Alicinha implorou:

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- Ai, amore, vamos pegar?

Não era a primeira vez que a esposa fazia um pedido assim. Era coração mole, não podia ver um abandonado que já queria cuidar. Caíto ponderou:

- Li, você sabe, né? Não é só brincar e passear com ele. Tem alimentação, vacina, médico, roupinha.

 Ela nem ouvia.

- Vamos, vamos levar o guri!

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 Horas depois, Guri (foi esse o nome dado a ele) estava almoçado, banhado e trajado para sua primeira consulta.

- Achamos largado na rua, doutor, como está a saúde dele? - quis logo saber a ansiosa Alicinha.

O pediatra deu o parecer:

- No geral, parece bem. Vou aplicar as vacinas e prescrever um vermífugo. No mais é passear bastante, especialmente ao sol e alimentá-lo bem.

O menino fez sucesso no aniversário de Alicinha. As amigas acharam o gesto de adotá-lo chiquérrimo. Todo mundo queria fazer carinho, ficar perto dele. A questão é que Guri não falava. Ninguém sabia se era mudo, ou se o silêncio vinha de algum trauma. O que o garoto gostava mesmo era de correr. Boa parte do dia passava se espalhando pela casa.

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- Sinal de que está bem cuidado - dizia, orgulhosa, Alicinha.

Numa dessas disparadas, infelizmente, Guri acabou tropeçando e espatifou a coleção de saquês raros que Caíto trouxera de Tóquio.

Foi um bololô. Ao ver a tragédia, Caíto saiu correndo atrás do danado. Mas Guri era veloz. Escapou pelos cômodos com aquele desvairado em seu encalço. Por onde passavam derrubavam vasos antigos, cristaleiras, copos de bico de jaca. Quase destruíram tudo, não fosse a firme intervenção de Alicinha.

Guri ficou de castigo. E o casal combinou que ele teria aulas de etiqueta para assimilar melhor o ambiente em que vivia.

As classes de modos à mesa, maneiras de se vestir, formas de se dirigir aos outros enfadavam Guri. Ele só queria correr. Mesmo assim, por determinação de Caíto, ficaria ali apenas se adquirisse um mínimo de educação.

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Numa quinta-feira, ao voltarem de um happy-hour com os Caldeira e Silva, Alicinha e Caíto deram com o dúplex vazio.  Vasculharam os ambientes de cima a baixo, depois o condomínio inteiro: Guri tinha corrido, dessa vez de casa. Nem suas lindas roupas e os brinquedinhos quis levar.

As buscas feitas pela polícia, duraram mais de mês, e foram em vão. Alicinha, deprimida, foi ao psiquiatra, que aumentou sua dose de Venlafaxina para 150 miligramas.

Num domingo, ao achá-la menos abatida, Caíto a levou ao Yoshie. Degustaram os sashimis florais e o saquê premium de sempre. Antes de pegarem a SUV no valet, Caíto entrou no pet shop do shopping e saiu com um filhote de buldogue no colo. Entregou-o a Alicinha dizendo:

- Taí seu novo Guri.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Opinião por Carlos Castelo

Carlos Castelo. Cronista, compositor e frasista. É ainda sócio fundador do grupo de humor Língua de Trapo.

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