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Opinião|O anel que tu me deste

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(Foto: Carlos Castelo)

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Depois que preparou o churrasco para a família no domingo sentou-se pesadamente no sofá e suspirou. Pegou os controles e ligou no Netflix. Quando os letreiros da série costumeira começaram a subir, levou a mão direita ao dedo anelar da mão esquerda, mania antiga de retirar a aliança e colocá-la um tempinho no dedo mindinho.

Mas cadê aliança?

Sobressaltou-se. Olhou em volta, nos cantos do sofá, em cada frestinha do curvim, revirou até o forro. E nada.

Acocorou-se, ligou a lanterna do celular e passou a pesquisar por debaixo dos armários, cadeiras, pufes, estantes de livros. Onde estaria aquele pequeno metal que representava, sozinho, anos de vida em comum? Viagens, filhos, prestações, alegrias, tristezas, doenças, superações?

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Como não a achava, foi aos quartos de cima. A esposa cochilava num deles. Entrou com pés de lã e tentou ver se não havia nada pelo soalho. Nenhum sinal.

Saiu quase rastejando para não despertá-la e tentou o banheiro. Tinha tomado uma ducha após a fumaceira da grelha, e se tivesse caído do dedo mindinho e rolado para o ralo?

Não, não, no ralo só restavam fios de cabelo...

Era o momento de rememorar todos os locais por onde passara durante o dia. De manhã estivera no supermercado para comprar picanha, cerveja e carvão. Depois passou numa mercearia para pegar o álcool 80% de acender o fogo. Por fim, parou numa padaria e pegou pãezinhos franceses.

Fez um esforço mental tentando lembrar se, em algum momento, a aliança pulara do seu dedo e se, na queda, não provocara algum ruído metálico.

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Era preciso resolver aquilo logo, de preferência antes da mulher sair da sesta. Vai que ela nota a falta do anel no dedo? A gente nunca sabe se está performando bem nas relações conjugais. Se o desleixo com a aliança fosse o gatilho para ela cismar que estavam numa outra fase ruim, podia ser o desenlace.

Ligou para o supermercadinho, já estava fechado. O dono da mercearia deixou-o na linha por um longo tempo para caçar o objeto perdido, mas a busca foi em vão. Na padaria, a atendente lhe informou que só havia um anel, mas não era de casamento, era um chuveiro de falso brilhante.

Foi quando teve o insight. A joalheria do shopping certamente ainda estava aberta. Iria até lá e imploraria ao vendedor que fizesse um novo anel, mesmo que houvesse um valor extra a pagar.

Assim foi. Mas não voltou.

Quando atravessava a avenida que dava na loja foi colhido por uma kombi de hot-dogs gourmet.

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No velório, todos choravam muito, menos a sua patroa. A mãe pediu que a filha fizesse um esforço. Que tentasse desabafar logo ali, diante do caixão do marido, seria melhor para o peito e a alma. Contudo, ela respondeu, secamente:

- Chorar por esse bandido que andava por aí - sem aliança! -  pra pegar vagabunda? Eu não!

Sacou seu anel do dedo, jogou no peito do cadáver e voltou para casa batendo os saltos na calçada.

Opinião por Carlos Castelo

Carlos Castelo. Cronista, compositor e frasista. É ainda sócio fundador do grupo de humor Língua de Trapo.

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