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Self-service de humor

Opinião|De como não me tornei baterista

Uma aventura no tempo do rock progressivo.

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Atualização:

Ninguém perguntou, mas as minhas maiores influências musicais vieram do rock progressivo. Talvez eu parecesse mais 'bad boy' se dissesse que o punk dos anos 1980 seria a minha real inspiração. Mas foram mesmo Yes, Emerson, Lake & Palmer, King Crimson, Brian Eno, Robert Fripp e Rick Wakeman os que fizeram a minha cabecinha.

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O primeiro LP que ouvi nessa linha mais elaborada do rock foi "Aqualung", do Jethro Tull. Quando bati os olhos naquela capa com o mendigo psicopata já me acendeu uma luz amarela. Parei tudo o que estava fazendo e botei a bolacha em meu Garrard com agulha de diamante.

Na hora em que os agudos da flauta de Ian Anderson espalharam-se através das caixas do amplificador Gradiente Quadrisonic veio o sinal verde. Ali entendi o que era a música do meu tempo.

A paixão só foi aumentando.  Os colegas da classe no ginásio e eu trocamos, sem escala, as figurinhas de futebolistas pelas coleções de discos. Os mais abastados compravam vinis importados na Hi-Fi e no Museu do Disco. Os menos, como eu, juntavam uma grana e compravam usados de um colega 'dealer'.

Por essa época meus pais ganharam uma bateria na rifa da paróquia. Sabedores da minha obsessão pela música vincularam meu desempenho escolar à promessa de que eu teria aulas do instrumento em breve. Logo me vi um Bill Bruford solando freneticamente aquela bateria Gope de coro de igreja.

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Obviamente, com tantos hormônios, uma certa tendência ao devaneio e a sexualidade aflorando, minhas notas acabaram ficando todas vermelhas. E a batera e o sonho de ser um 'pop star' ficaram lá me olhando num canto escuro da garagem.

Uma tarde, o colega 'dealer' foi até em casa após a aula. Levou alguns vinis em sua bolsa de couro de cabra comprada do hippie da Augusta com a Franca. Lembro-me de ter ouvido algumas bandas muito loucas aquele dia: Soft Machine, The Wilde Flowers, Caravan, Hatfield & The North - todos da chamada Canterbury Scene. Movimento musical, segundo o colega, raríssimo e com um pé no fusion. "Comprei as bolachas de um cara que voltou de Londres, estão novinhas e só ele, você e eu sabemos desses grupos no Brasil. Por isso vai sair um pouco mais caro, só que é tudo papa fina" - disse ele com convicção.

Quando me revelou o valor da transação fiz uma conta mental: dava seis meses de mesada. "Impossível", decretei e voltei a dar golinhos no meu Toddy morno.

Mas o 'dealer' não era 'dealer" por acaso, sabia negociar. Colocou todos aqueles ícones do Canterbury Scene no meu colo e perguntou: "e a bateria lá na garagem, aceita troca?"

A verdade é que não podia mais viver sem aquele som britânico. A desatualização poderia ser fatal pra minha futura carreira de 'band leader'. "Fechado, mas quero também aquele pirata do Rick Wakeman ao vivo", exigi.

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Eu estava com ingressos comprados pra ir com meus dois primos ao show do multitecladista do Yes no estádio da Portuguesa, o álbum seria fundamental.

Sem consultar ninguém, autorizei o 'dealer' a sair de casa com a bateria.

Mas o castigo não tardou a vir. Nunca virei um Bill Bruford e ainda tive que ir ao show do Rick Wakeman na companhia de dois dos maiores leigos em rock progressivo no país: mamãe e papai.

Opinião por Carlos Castelo

Carlos Castelo. Cronista, compositor e frasista. É ainda sócio fundador do grupo de humor Língua de Trapo.

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