O trânsito nessa época do ano é o fim. Ontem à noite então estava infernal. O fato atrasou bastante a chegada de tia A., a quituteira da família, na nossa ceia. E, sem o peru recheado, o lombo, as saladas, maioneses e sobremesas dela não se podia começar nada.
Tio B. já estava, como sempre, abusando da bebida. E, sem comer nada, era de se esperar o pior. Esse ano, no quesito porre, havia ainda C. e D., maridos respectivamente de E. e F. Ambos haviam perdido seus empregos. A combinação dos dois com o alcoolismo do tio B. prometia.
Quando deu 11 e 15 tocou o interfone. Todos bateram palmas para a chegada de tia A. e as comidas. Só que, quando ela entrou na casa, notaram que estava com a cara toda borrada de chorar.
"O peru queimou!" - anunciou aos prantos.
Foi um banho de água fria. E, para muitos, um mau presságio. Nos últimos 17 natais, tia A. nunca errara a mão em nada. Nem no complexo e sempre esperado pavê.
Para quebrar o gelo, vovô G. levantou seu copo e gritou da varanda:
"Um brinde ao peru torrado!!"
Tio B., aproveitando a ocasião para calibrar um pouco mais de Campari, urrou:
"Apoiadíssimo, G.!!!! Saúdeeeee!!"
Abriram-se os trabalhos com os salgadinhos de H., assistente do lar, da avó I. Já era uma tradição petiscar o tender com abacaxi no palito que ela fazia. Só que, na ceia de ontem, em vez de tender veio blanquet de peru. Alguns torceram o nariz para a economia. Mas seu J. - o vizinho viúvo do 43 - deu seu contraponto poliana, já que estava numa boca livre:
"Não vai ter peru, mas pelo menos veio um pouquinho nos palitos."
Dona K. e dona L., as irmãs carolas, estavam na frente da TV esperando pra ver a missa do galo. O ruído em torno do sofá onde estavam as duas velhinhas era alucinante. No lugar delas, qualquer um já teria dado um safanão nos fedelhos M., N. e O. que brincavam com seus insuportáveis e barulhentos brinquedinhos eletrônicos.
Tio B. vomitou.
Culpou tia A.,em voz alta, pela demora da comida chegar à mesa. Ela ficou ainda mais desacorçoada. Estressada, acabou discutindo com a irmã, tia P.Para amenizar o bate boca, vovô G. pediu ao neto mais velho, Q.R., que colocasse umas músicas natalinas no computador. O garoto escolheu um playlist que a mãe fizera e o clima abrandou.
C. e D., os maridos desempregados, já de cara cheia, deram para se estranhar e quase saiu pancadaria na porta do lavabo. Vovô G. pediu que o neto aumentasse o volume do jingle bells.
Tio B. vomitou.
"Quase meia-noite, gente, vamos pra mesa!" - informou tia P., excitada.
Acorreram todos de uma vez e começou a confusão para ver quem pegava os melhores pedaços de carne. Quando todos estavam ceando, dona K. começou a chorar copiosamente. Tia P., seguida de todas as outras mulheres da família, foi consolá-la.
"É tocar essas músicas e me lembro que o meu S. estava aqui comigo no ano passado..."
Trocaram "Noite Feliz" pelo cd da "Galinha Pintadinha."
Depois do amigo secreto, serviram as sobremesas.
"É pavê ou pacomê?" - seu J. repetiu pelo décimo sétimo ano a velha piada, todo mundo partiu para cima dos doces sem rir do gracejo.
Tio B. vomitou.
(Pronto. Agora troque as letras que representam cada personagem pelo nome de seus parentes e amigos e veja se não foi igualzinho à sua noite de ontem).